03 - LAURA BATISTA
03 - LAURA BATISTA

Vendavais e tsunamis na vida de Rute e Noemi

“Não me proíba de ir com a senhora nem me peça para abandoná-la! Onde a senhora for, eu irei; e onde morar, eu também morarei. O seu povo será o meu povo, e o seu Deus será o meu Deus. Onde a senhora morrer eu morrerei também, e ali serei enterrada. Que o Deus Eterno me castigue se qualquer coisa, a não ser a morte, me separar da senhora!” (Texto bíblico, de Rute, a nora -1.16,18; para Noemi, a sogra - Bíblia NLH).

Capítulo Primeiro: Lady Laura

Estamos no mês de julho de dois mil e dez. Saí do trabalho hoje, mais especificamente da Escola onde trabalho, por volta de 21h40min. Passei em casa, jantei, alimentei meu cachorro e em minha “motoquinha” atravessei a ponte sobre o rio São Francisco que liga as duas cidades, Petrolina e Juazeiro, mais ou menos 22h45min.

Trafegar nessa hora é ótimo. Noventa por cento dos carros encontravam-se nas garagens das residências. A temperatura estava excelente, um tanto baixa e refrescante. O vento me açoitava, não menos que a vida nesses últimos meses. Eu estava indo para o Hospital Regional, em juazeiro-BA, me revezar com minha irmã Auzenate para os cuidados à minha única cunhada Maria de Fátima, internada e muito enferma.

Quase não tenho escrito. Melhorei um pouco do desânimo, da fadiga, em relação há tempos atrás, mas minha apatia era persistente. Relutei dias, meses, para descrever esses episódios, não só por que eram dolorosos, mas por que tudo parecia ter perdido o sentido. Sou uma pessoa de natureza carente. Perder minha mãe, sendo ela tão nova, foi um enorme baque, que desmoronou, internamente, meu emocional, embora eu estivesse de pé.

Onde está o começo disso tudo?

Difícil precisar.

Uma noite, em minha cama, enquanto meditava na vida, tive uma rápida visão: meu irmão Nilson encontrava-se, nessa visão, debruçado sobre um ataúde, como quem chorava desesperado. Foi muito rápido, mas o suficiente para Deus colocar em meu coração uma certeza: Fátima seria afetada de maneira assustadora. Contorci-me em agonia. Temi absurdos! Roguei em extremo a Deus, com a face no chão, para que isso não acontecesse.

Acabei esquecendo o fato.

Alguns meses se passaram e eu fui ouvindo nas pregações e revelações de outrem: “Deus vai fazer um reboliço em sua vida”. Minha mãe dizia: “Reboliço, não é nada bom...”. Mas minha vida já era tão “avessada”, por isso eu acreditava que o tal “reboliço” seria uma sucessão de fatos que só podiam redundar em coisa boa, algo que mudaria minha vida de forma assombrosa e radical, portanto, para melhor.

Desde que casou, ou seja, que a conhecemos, Fátima tinha problemas com seu ciclo menstrual, era extremamente desregulado. Ora menstruava demais, durante todo o mês, ora passava até três meses com amenorreia. Por não ter convênio não ia muito ao médico e quando o fazia pelo SUS era tudo muito demorado, levando bastante tempo para uma simples consulta e os procedimentos eram bem simplórios e não se chegava a um diagnóstico conclusivo.

Nem sabemos como ela conseguiu engravidar, considerando os meios normais, as duas gravidezes sempre nos pegaram de surpresa.

Nesses últimos meses ela parecia meio pálida. Comentamos isso, mas nada foi feito. Até que uma tontura e forte dor de cabeça a levaram ao médico, que, de cara espantou-se com sua palidez. Achando que era uma grave anemia o médico solicitou um hemograma e o resultado foi espantoso. Um simples hemograma pode falar muito sobre o sangue que corre em nossas veias, qualquer pessoa, com certo sacrifício, pode fazê-lo.

Fátima e meu irmão Nilson, seu esposo, moravam no Projeto de Irrigação, em Maniçoba, interior de Juazeiro-BA, distante 47 km de mim, que moro em Petrolina-PE. Em casa fui tomando conhecimento do resultado dos exames.

O histórico do hemograma assustou o médico, que solicitou outro, dessa vez com Plaquetas, e ele decretou: “É muito sério!” Imediatamente ela foi encaminhada para determinado centro médico para consulta com hematologista, dormiram em minha casa. Antes disso, eles falaram-me da seriedade do caso, mas eles próprios não tinham consciência de quão grave era. Eu me inquietei bastante, mas nada disse.

À noite pedi para ver os novos tipos de exames solicitados e o encaminhamento dizia: “Centro de Oncologia”. “Meu Deus! Por que isso?!” Nessa hora algo subiu pelos meus pés, um calafrio que percorreu todo o meu corpo, seguido de tremor, ao mesmo tempo uma angústia impactante. Nessas horas eu via quanto minha fé oscilava e o quanto isso era vergonhoso. Maravilha Deus já tinha feito por mim, eu tinha convicção de sua grandeza, fosse qual fosse o resultado das coisas. No entanto, meu sistema nervoso se abalava por bem menos e eu era tomada por preocupação exagerada a ponto de perder o sono. Minha mãe até me poupava de algumas coisas e eu ralhava com ela.

Lembrei-me imediatamente do que Deus me fez sentir e procurei conversar com eles, uma conversa típica de quem pisa em ovos, morrendo de receio:

- Gente... Vocês viram que estão sendo encaminhados para um Centro de Oncologia?! Nilson, você sabe o que isso pode significar?

Ele era uma pessoa extremamente bem informada, eu imaginava que ele pudesse deduzir algo temível.

- Oncologia tem a ver com câncer... Respondeu ele de forma tranquila.

- Então... A médica falou por que encaminhou vocês para esse Centro?

- Não. Suponho que, mesmo sendo pelo SUS, esse Centro possua meios de exames mais aprofundados.

- Sei não... Acho isso preocupante. Vocês se preparem.

- Não há de ser nada. Disse Fátima com um suave sorriso.

Depois que Fátima deitou-se eu pude conversar melhor com meu irmão e pedi que ele realmente se preparasse, pois a médica poderia estar investigando algum tipo de câncer e que ele estivesse preparado para algum resultado assustador.

Segui para o meu quarto, eu estava com leves tremores. Coloquei outra vez minha face no chão e clamei a Deus, mas só havia vazio em meu coração. Respirei fundo, li a Bíblia. Depois revolvi e encolhi-me na cama, principalmente quando reconsiderei a palidez de Fátima. Lá longe, como se meu consciente não desejasse torná-la audível, pude ouvir uma “voz”: “Prepare-se!” “Oh, meu Deus, eu não quero ouvir isso!” Disse para mim mesma. “Eu não quero saber de mais nada!”

Pela manhã eles foram ao médico e foi feito o exame mielograma.  Foi perfurado, com agulha adequada, o osso esterno, retirado líquido para análise. À tarde eles mostrariam o resultado ao médico. Combinamos que meu irmão me ligaria conforme o resultado do mesmo, pois eles planejavam voltar para Maniçoba de lá da clínica. Enquanto esperava meu coração ficava bem apertado e eu insistia em espantar a angústia.

Eu estava de saída para o trabalho, e achei que eles estavam demorando em ligar. Quase arrumada para ir para o Projeto de Irrigação NH-7, por volta das 15h20min, ouvi mexer no portão e pensei: “Eles... Pessoalmente?!” Fiquei esperando que se aproximassem e aguardei o ‘veredito’.

Ao se aproximar meu irmão foi logo chorando e dizendo que eu tinha razão, pois o problema de Fátima era muito sério. A nossa Fafá, dizia ele, estava muito doente! Ele afirmou com o semblante fechado. Chorei junto, mas Fátima parecia forte e nos consolava, embora estivesse também com o semblante sombrio e havia nela um olhar concentrado. Horas depois eles voltaram para casa.

O diagnóstico era de AREB - Anemia refratária com excesso de blastos -. De princípio os médicos não consideraram o caso como leucemia achando que a mesma poderia tornar-se, dependendo da  evolução dos blastos e da queda das taxas.  Na verdade a possibilidade dessa anemia se transformar em leucemia mielóide aguda é cerca de vinte e cinco por cento. Esse tipo era comum em pessoas acima de 60 anos, o que espantava bastante os médicos, uma vez que Fátima só tinha 32.

Busquei informação pela internet, eram tantas que melhor mesmo era ficar com o básico e seguir em frente com o tratamento. Essas informações contrariavam a opinião do médico que a diagnosticou, pois alguns conteúdos afirmavam que se tratava de leucemia, sim. E muito agressiva.

À noite, já deitada, Deus me deu outra visão de uma mulher em uma rede, uma mão descia sobre ela. Quem era aquela mulher?! Seria Fátima? Cri que sim. Estaria desmaiada? Morta? “Oh, meu Deus...” Fiquei bem angustiada, porém,  encontrava-me em constante espírito de oração.  Tive uma certeza: Deus havia determinado algo.

Passado alguns dias fui ao encontro deles no centro de oncologia. Fátima estava ainda mais pálida, e meu irmão bem alquebrado e muito contrito.  Usava uns óculos escuros, que virou sua proteção contra exposição de sentimentos, ele abraçou-me chorando, nunca o vi tão frágil, reforcei que nós iríamos vencer. Lembrei-lhe de um hino evangélico que dizia: “'Os guerreiros se preparam para a grande luta', nós somos guerreiros! Vamos nos preparar para vencermos essa batalha. Já acionei igrejas, irmãos, programa evangélico na TV... Pedi oração a muita gente". Ele se comoveu e teceu elogios às suas irmãs que tanto se empenhavam nessas horas.

Antes de encontrá-los ouvi comentários admirados de que Fátima estava reagindo bem demais, e que talvez estivesse fingindo para não abalar a já tão abalada família. Ela confirmou o quanto estava tranquila, pois sabia que seria feito a vontade de Deus, mas no primeiro dia, ao acordar, sentiu-se deprimida e com enorme anseio de sucumbir a tudo e desejou nem sair da cama, mas disse para si mesma que isso não seria o melhor. Tratou de reagir e a partir daí não sabe a causa de se sentir tão bem.

Imediatamente lembrei-me da visão, “então ela estava dormindo Deus a visitou de alguma forma, e a revestiu de força, foi isso!” Contei tudo a ela, e foi a vez de eu ficar tranquilizada.

Era final de abril de 2010, minha mãe, Laura, encontrava-se em Goiânia, no Goiás. Ela e meu pai tinham ido para as bodas de ouro de meu tio Pedro, quando lá recebeu a notícia da doença de Fátima. Algum tempo depois ficamos espantados com o que meu pai nos contou. Ele disse que se encontrava em um quarto, quando minha mãe adentrou o mesmo e depois de contar a respeito do telefonema recebido disse: “João, nós vamos perder Fátima". Meu pai retrucou, não esperava isso.

Os que estavam lá disseram que minha mãe mudou o semblante completamente, já não era aquela mulher extremamente alegre. A seguir trataram de voltar.

Logo a tranquilidade deixou de ser total quando nos deparamos com a inexperiência dos médicos oncologistas e hematologistas, frente ao problema de Fátima e ao fato de não encaminhá-la para um grande centro, mais especializado, de imediato. Grandes barreiras burocráticas começaram a surgir, bem como a exigência de diversos exames solicitados pelo SUS, para que ela fosse, depois de um tempo, até Salvador.

Nesse ínterim alguém ficou em extremo abalada: minha mãe, Laura, sogra de Fátima, o que nos surpreendeu, pois ela sempre foi uma pessoa muito forte, alegre, comunicativa, risonha... Sempre levantando nossa moral. “Não é bem assim, não será desse jeito, Deus vai nos dar vitória”, dizia ela sempre, fosse qual fosse a situação. Porém, de repente minha mãe passou a se sentir muito cansada, e falava no quanto Fátima era nova, que tinha dois filhos para criar e ficava imaginando as muitas dificuldades sem a presença dos pais de seus netos durante esse período do tratamento, soube depois que ela, muitas vezes, quis me poupar e não desabafava muita coisa.

Fátima começou a dar entrada nos papéis que aprovariam sua ida a Salvador e a de seus irmãos que seriam seus doadores de medula, a princípio apenas para exames. Ela veio junto com Alcione nossa prima, fui encontrá-las em Juazeiro. Nesse dia Fátima parecia ter o semblante bem mais fechado, segundo ela era pelo fato de estar muito cansada.

Soube depois que meu irmão se segurou até ela sair de casa, era preciso conter as emoções. Tão logo ela se foi, contou-me minha mãe, ele disparou em um pronto! Meu irmão não chorava, ele urrava clamando a Deus em alta voz, por sorte só estavam ele e minha mãe em casa. Laura o abraçou e choraram juntos.

Laura sempre tivera uma condição psicológica um tanto frágil, embora sua fé fosse forte. Depois disso ela passou a sentir-se mais fraca ainda, cansada e com pressão alta, coisa que nunca teve e também perdeu peso.

Os tais papéis de Fátima se complicavam cada vez mais. Não entendemos nem os médicos explicavam por que ela não seguia só com o encaminhamento ou o laudo médico para lá, na capital, fazer outros exames. Ela voltou a menstruar e a preocupar os médicos e passou a vir algumas noites só para tomar sangue e ia se debilitando cada vez mais, embora tão logo recebesse o sangue ou as plaquetas seu ânimo mudava.

No começo de junho minha mãe veio para Petrolina, como de costume, para receber sua aposentadoria e visitar os filhos, dessa vez ela estava muito apressada provavelmente voltaria no outro dia, pois não poderia deixar Fátima sozinha. Minha mãe também estava um tanto abatida, notei. Mas não dei muita importância, afinal as lutas nos deixavam a todos dessa forma. Ela foi fazer uma consulta no posto de saúde próximo de minha casa e lá se sentiu muito mal. Soube depois que ela pediu para não me contarem eu zanguei-me com ela.

Sentamo-nos à mesa como fazíamos e punha nossa conversa em dia. Nessas horas ela falava de suas emoções, de Nilson, do tal pranto que ele tivera, do quanto ela estava sentida. Levantei-me e me pus a fazer o almoço, enquanto me locomovia, fui ouvindo-a. Em dado momento, enquanto desabafava chorou, sentida, atingida pela dor do sofrimento de sua nora, e falou: “Fátima é minha filha! É como uma de vocês! Eu disse a Deus que melhor seria que fosse eu”. Rebati e pedi que ela não falasse aquilo.

Minha mãe voltou para Maniçoba e Fátima continuou com suas idas e vindas. Depois soube que minha mãe estava chorando escondido, temia afetar o emocional de sua nora, bem como de seu filho.

Dia 16 de junho minha mãe me ligou parabenizando-me pelo meu aniversário, disse que estava orando por mim e que tinha pedido a Deus para expulsar todas as enfermidades que me incomodavam e enviou-me certa quantia para o meu presente.

No dia de São João todos estavam na roça menos a semimorta aqui, mas eu tinha um bom motivo: estava planejando passar mais de uma semana durante o recesso escolar com eles, que seria no começo de julho, por isso me aguentei e quis colocar umas coisas em ordem. Mas ela fez um breve comentário lamentando minha ausência nesse dia em que a maioria de seus filhos estava reunida em casa dela.

Na noite do dia 25 de junho de 2010, depois da janta, minha mãe começou a se sentir mal, mas suportou até a madrugada quando seu estado se agravou, tendo febre muito alta.

Resolveram trazê-la para a emergência.

Dia 26 de junho, pela manhã, recebi um telefonema, era minha irmã Auzenate. Ela falou que tinham vindo até Juazeiro, na noite passada, pela madrugada, com minha mãe que passara muito mal, a mesma teve um mal estar súbito e começou a vomitar e estava também com diarreia e febre alta com mais de trinta e nove graus.

Eu fui para ficar parte do dia, logo pela manhã, pois a tarde iria trabalhar. Providenciaríamos alguém para ficar na parte da tarde.

Lá a encontrei na emergência em um cubículo retangular com três compartimentos divididos por uma pequena parede. Cada compartimento tinha duas camas, que eram algum tipo de maca. Ela estava tomando soro, aproximei-me beijei-lhe e brinquei:

-Oi, “Lara”, como gostávamos de chamá-la de vez em quando, de novo essa história de comida que ofendeu?

- Pois é... Foi só o que ela disse. Sabíamos o quanto ela tinha o intestino sensível e algumas comidas sempre lhe causavam um desarranjo.

Fiquei lá, fazendo companhia. Ela estava com uma aparência boa apesar de vomitar um pouco e precisar ir ao banheiro vez em quando.

Auzenate me falou que o final de semana inteira tinha sido ótimo! Houve muitas brincadeiras, mãe teve até uma crise de riso. Auzenate contou-lhe um intrigante sonho que tivera, pois mãe sempre tinha uma palavra decifradora.

- “Sonhei, disse Auzenate, que estávamos na estrada que passa defronte ao lote e mãe me chamava e dizia: “Vamos ver o Senhor passar”. Eu perguntava se Ele realmente passava ali. Mãe respondia afirmativamente. Logo depois pude ver quatro a cinco pessoas todas de branco e um homem que chamava atenção pela sua estatura, pelo seu porte. Tinha vestes sacerdotais e uma mitra em sua cabeça. Ele parou bem em frente de mãe, olhou-a nos olhos, por uns segundos, bateu continência e se foi”.  Ao contrário do que esperávamos, ela nada falou, entretanto Auzenate notou que houve mudança em seu comportamento. Mãe ficou mais quieta, mais sisuda e não tocou mais no assunto do sonho.

Dia seguinte, à noite, eu fui ficar de acompanhante. Ela estava bem melhor vomitou apenas uma vez e a diarreia havia diminuído consideravelmente. Aproveitei e a encorajei dizendo-lhe que pela manhã falaríamos com o médico para dar-lhe alta. Queríamos sair daquele ambiente precário e desagradável, como eram os hospitais do SUS, o mais rápido possível. Terminaríamos o tratamento em casa. Ela concordou e disse “amém”!

Desde o primeiro dia ela se queixava de dor nas costas achávamos que era causado pela cama, até compramos um spray à base de cânfora para passarmos nela, escondido da equipe de enfermagem.

No dia seguinte, infelizmente, ela começou apresentar leve cansaço.

Começamos a ficar preocupados. O médico, para piorar, só aparecia de 24 em 24 horas, para outros pacientes nem isso. Foram pedidos raios-X do tórax e o mesmo só foi feito com mais de 24 horas depois.

Todos perceberam o quanto o quadro dela estava se agravando. O cansaço piorou em questão de horas. Seu abdômen se distendeu de maneira rápida, e ela já não falava. Com os olhos fechados só nos respondia quando insistíamos em voz alta.

Auzenate se manifestou, de maneira exasperada, tão logo se deu conta da negligência médica, pois sabíamos que na mansidão nada se resolveria, e tratou de acionar o médico da UTI (CTI) que estava de plantão. À enfermeira-chefe exigiu que minha mãe tivesse atendimento, o que aconteceu. O médico da UTI prescreveu-lhe sonda urológica e nasogástrica. Minha mãe debateu-se muito na hora de colocar a sonda pelo nariz, sangue saiu de sua garganta. Em seguida ela teve uma terrível crise a ponto de agitar-se muito. Auzenate era quem estava acompanhando e nos relatou. Não conseguia controlá-la mesmo tendo ajuda de outra acompanhante. Minha mãe se debatia como se tivesse tendo uma convulsão. Quando ela narrou tal situação encolhi-me por dentro. Eu não suportaria tal cena. Auzenate foi bastante forte, embora não tenha mostrado desespero nessa hora, foi ela quem presenciou os piores momentos.

Nisso apareceu uma médica bem nova, com cara de recém-formada, provavelmente uma residente. A gente se divide entre o experiente e aquele de bagagem recente. Ela colocou o estetoscópio em minha mãe, auscultou-a e disse de forma evasiva: “Pulmão não é...” Minha irmã perdeu a calma e quase falou para ela, em outras palavras, que aquele tipo de consulta ela também saberia fazer.

Pouca coisa que produziu efeito fora realizado naquele hospital. Auzenate tomou a decisão de removê-la dali, porém apareceram muitos obstáculos. Era preciso conseguir uma vaga em UTI de outro hospital. A essas alturas minha mãe parecia estar fora de si, em semicoma.

Chegamos à conclusão de que deveríamos tentar uma vaga na UTI do Hospital Regional que ficava próximo onde Laura estava internada, o problema seria a remoção e o mais difícil: conseguir a vaga.

O Hospital regional de Juazeiro, tempos atrás, tinha péssima reputação. Só ouvíamos falar, mas nunca precisamos de seus serviços. Contudo, o mesmo passou por uma reforma e agora sua estrutura física fazia parecer com hospital particular. Tudo era novo.

Nessas horas entra em cena, atuando em papel importante, a presença dos amigos. Amigos esses que tinham relação com as irmãs do prefeito de Juazeiro. Estas logo compareceram ao hospital e usando suas influências conseguiram uma vaga na UTI do Regional de Juazeiro. Foi assinado um termo de responsabilidade para que a minha mãe pudesse ser removida.

Chegando ao Regional Laura foi direto para UTI. Não nos assustamos, ao contrário, até relaxamos mais. Entendíamos a importância do tratamento intensivo e não o víamos como um lugar de quem está a um passo da morte.

Na UTI havia três médicos. Um, em especial, nos deixou mais tranquila, pois evidenciava segurança e conhecimento dos procedimentos tomados. Mas a surpresa veio com a troca de turno. Quem assumiu foi a mesma médica jovem lá do outro hospital. Agora, ao contrário de antes, parecia mais prestativa e atenciosa. Minha irmã pediu-lhe desculpas. Ela demonstrou compreensão. Lá no outro hospital, me parece, ela era plantonista. Os internados pareciam ficar nas mãos deles tão somente uma vez, já que eles apareciam de 24 em 24 horas. Não sei hoje, mas há décadas atrás o médico da emergência, que internasse algum paciente, ficaria responsável pelo mesmo, acompanhando-o diária e constantemente. Com minha mãe isso não aconteceu.

A administração do regional era maravilhosa e estava sob a direção do IMIP. A assistência social derrubava para nós todas as pequenas barreiras, que vez ou outra surgiam.

Minha mãe nasceu em agosto de 1943. Casou-se com o primo João Alves em janeiro de 1960, aos 16 anos, em Sítio Piranhas. Mais ou menos três meses depois engravidou e sofreu aborto espontâneo. Em setembro do mesmo ano engravidou novamente, em junho de 1961 eu nasci.

Os primeiros anos de casada foram meio difíceis, o marido era exigente, ranzinza e autoritário, apesar de jovem.  O mesmo tinha mania de organização. Nada podia ficar fora do lugar.  Ele tinha vinte e um anos quando casou, e não entendia a jovem esposa. Para agravar ainda mais a situação João não se assumia como um homem casado.  Deixava a esposa em casa e ia para as tão famosas cantorias, assistir apresentações de violeiros como Elizeu Ventania. Havia também as famosas debulhas solidárias e comunitárias. Nesse meio sempre surgia a possibilidade de namoricos e as muitas fofocas envolvendo o nome de João fazia Laura sofrer de maneira constante.

Uma das gravidezes deixou-a muito sonolenta. Quando João chegava antes do previsto e a encontrava dormindo puxava e soltava o punho da rede de forma agressiva, com um solavanco, e já ia falando: “Ainda dormindo?! Só presta para dormir!” Minha mãe acordava sobressaltada, com o coração a mil e o corpo meio trêmulo.

Laura nasceu em uma fase cíclica da seca nordestina. Sua mãe, minha avó, estava em êxodo rumo a uma cidadela no interior de Natal-RN. Seguia montada em um burro e a ponta extrema da cangalha batia repetidamente na barriga de sua mãe, que estava grávida de alguns meses de Laura. 

Em uma fase mais difícil ainda, alimentou-se com leite de jumenta para poder sobreviver. Com o tempo muitos faziam mangação desse tipo de sustento, da forma como ela foi alimentada, não sabendo eles que o leite de jumenta é um alimento extremamente nutritivo.

A vida do casal não era fácil. Vivia da Agricultura que era cada vez mais escassa por conta da falta de inverno. Como meu pai não tinha terra própria trabalhava para os outros. Arrendava, trabalhava na “diária” ou simplesmente arrancava toco, ou seja, pedaço de árvore quase morta, mas com o tronco bem fincado na terra. Verdade seja dita: ele tanto tinha honestidade como lhe sobrava disposição para manter sua família, seja no que fosse.

Laura era do lar, cuidava da casa. Uma de suas atividades mais difíceis era lavar roupas naquela região dominada pela seca. Muitas vezes se deslocavam até aos baixios, córregos ou lajedos, nesse último iam à busca das águas ajuntadas nas enormes bacias naturais, reserva proveniente das chuvas.

A partir daí era tudo igual, inclusive a repetição de um filho todo o ano. Ela teve nove; quatro morreram antes de completar dois anos.

Quando criança os filhos tinham muita diarreia, provavelmente no período da dentição, problemas ambientais, de água potável, falta de assistência, etc., contribuíam. Minha mãe lamentava, e em seu desespero, com três filhos pequenos, ela tinha por volta de vinte anos, um filho anualmente, falou sem pensar, que achava melhor que nascesse “tapado”, no caso, sem defecar tanto. Não foi por maldade, foi por desespero, mas as palavras tem poder. Infelizmente um filho nasceu muito doente e ainda por cima sem o ânus, apenas uma pele recobria a área, sem o formato anal. A criança, contou-me minha tia Tereza, se espremia a ponto de avolumar a área anal. Ele chegou a vomitar fezes.

A criança chorava noite e dia.   Meu pai acusava-a de tudo, constantemente. Certa vez, estando de resguardo, ante tanta incompreensão, ela ficou desesperadamente descontrolada, colocou as mãos na cabeça e se pôs a gritar em alta voz.  Segundo minha tia.

Minha tia Tereza meio que o desculpava e colocava todas essas atitudes na falta de experiência e imaturidade do mesmo, quando ele, não sabendo o que fazer colocava o chapéu na cabeça e simplesmente saía de casa deixando-a sozinha com a sua dor. 

Para Laura poder comemorar cinquenta anos de casada ao lado de seu esposo, hoje idoso, e agora bem sensível, choroso, suportou poucas e más horas.

Sendo Laura nova, inexperiente, Tereza, sua irmã mais velha, junto com a solidária cunhada Luíza, tomou a dianteira. Levaram a criança para Mossoró. Foram de trem, antes pediram ajuda financeira a um e a outro, e passaram dias tentando conseguir um médico para a mesma. Quando conseguiram um, o médico desenganou a ambas: “Olha, isso é muito difícil. Não se sabe se esse fechamento anal vem do intestino ou até se a criança tem intestino. Esse tipo de tratamento só seria resolvido em Fortaleza”. Para Fortaleza elas não podiam ir, dada a situação financeira precária. Segundo minha tia, meus pais não tinham sequer um cabrito para vender e investir no tratamento do filho.

As duas tias insistiram muito com o médico e lhes garantiram a responsabilidade do resultado. O doutor, então, resolveu fazer a vontade delas, este usou alguma coisa, provavelmente um bisturi, para provocar o furo anal, sem anestesia, e a seguir introduziu o dedo.  Minhas tias disseram que a criança esticou-se toda e deu um grande e lancinante grito. Não se sabe como não desmaiou.

Pouco tempo depois a criança veio a falecer.

Minha mãe arrependeu-se horrores! De joelhos, clamou aos céus o seu perdão. Sei que ela o obteve. Quando há sinceridade, a Bíblia nos garante isso.

As crianças nasciam normais, vistosas, corpinho cheio, mas depois de poucos dias os moradores daquela região, percebiam a deficiência ou alguma doença nas crianças. Elas simplesmente começavam a vomitar e aí tinha início a via crucis de mãe e filho. 

Um deles, em especial, que foi atendido pelas duas tias, mais uma vez, ficou muito magro, acamado e meio em coma, por fim estourou os dois olhos, poucos dias depois morreu.

Em 1962 já com dois filhos grandinhos o casal deixou o sertão e foi para Mossoró. Meu pai foi trabalhar no descarrego de sacos de sal. Algum tempo lá, ouviram as notícias de abundantes chuvas ocorridas no velho sertão. Depois de dois anos morando em Mossoró, resolveram retornar para o interior.

Em setembro de 1968 faleceu meu avô Joaquim Batista de Azevedo. Minha mãe era muito afeiçoada a ele. Em sua infância, mesmo adolescente, ainda dormia com ele na mesma rede.  Ao receber a notícia de sua morte minha mãe ficou abaladíssima!  Não foi para o enterro porque a condição financeira não lhe permitiu, e o trem que fazia o transporte era dia sim dia não, portanto, no dia do enterro não haveria trem que a levasse.

Passado uns dias, porém, minha mãe decidiu visitar os enlutados de sua família. Não tinha sequer sandália em bom estado para calçar, tomaram emprestadas as sandálias “havaianas” do sobrinho, e o vestido era de sua irmã Tereza, que era mais baixa. O vestido ficou constrangedoramente curto.

Certa vez em uma ocasião em que visitava as filhas no sertão, meu avô Joaquim pediu que ninguém se angustiasse pela morte dele e não fizessem grandes sacrifícios, pois isso não o traria de volta, alertando-as ao afirmar que o Senhor Jesus o chamaria a qualquer momento. Dizia com muita tranquilidade.

Minha mãe sabia que meu avô havia sido enterrado, isso foi extremamente doloroso, pois ela desejava despedir-se de seu velho pai.

Por ocasião da visita à família, minha mãe fora batizada com o Espírito Santo.  A mulher triste, tímida e acabrunhada morreu naquele dia, dando lugar a uma mulher determinada, alegre, vivaz e comunicativa, traço que lhe acompanhou pelo resto de sua vida.

Nos dois, três dias que se seguiram comportamentos estranhos aconteceram. Até mesmo minha mãe tornou-se uma pessoa cheia de alegria em contraste com os dias anteriores. Passou, inclusive, a falar muito e a pregar a palavra de Deus aos familiares não evangélicos.  Não demorou muito para que alguns a considerassem meio louca. 

Mas foi constatado também que minha mãe estava um tanto depressiva. Ao voltar para casa, no interior, não mudou muito. Falava bastante e pregava a respeito da Bíblia; por outro lado não se alimentava direito nem conseguia dormir, havia certa perturbação, mais tarde minha mãe considerou essa situação um tanto maligna. Meu pai não sabia o que fazer. Foi aí que apareceu o seu irmão mais velho, Diomédio, que sugeriu internamento em Natal. 

Para Tereza, e a própria Laura, foi dito que ela iria a uma cidade próxima apenas para uma consulta. Só na volta João comunicou o internamento de sua esposa à sua cunhada e afirmou que Laura fora internada como solteira e sem filhos, para alarme de minha tia e foi logo dizendo que não sabia se ela voltava, o irmão dele providenciou o tal internamento. Minha tia ficou apavorada e disse:

- Não é como você pensa. Ela não ficará naquele lugar.

- Não tem mais jeito, Tereza, ela não sai de lá. Afirmou João.

Não se sabe se João respondeu dessa forma dado a impressão que tivera do lugar, afinal tratava-se de um manicômio, possa ser que ele tenha considerado a sua esposa louca e vendo o ambiente cheio de loucos... De forma incrédula achou que ela jamais sairia daquele lugar. Mesmo hoje, em sua maturidade, ele nunca soube ter um pensamento analítico, diretivo e firme a respeito de certas decisões sérias na família, na vida dos filhos. Isso sempre ficou por conta de minha mãe e ela sentia o peso de carregar tal responsabilidade sozinha.

- Sai, João. Porque tem "UM" que a tira de lá, rebateu Tereza, e quis saber qual foi a reação de Laura quando soube do internamento. A resposta foi que ela ficou chorando e gritando, pedindo para ele não deixá-la ali. Novamente Tereza quis saber se ele também chorou, se ele se condoeu perante essa situação. Ele respondeu: “Tereza, quando eu vier chorar ou me abalar o mundo terá caído a metade”.

Segundo a própria Laura narrou, os primeiros dias no sanatório foram terríveis. Ela parecia um bicho acuado e logo de início foi-lhe receitado tratamento com eletro choque. Quando era o dia de tomar os tais choques havia um sentimento de pânico que reinava em todo o ambiente.

Certa vez ela foi deitada em uma maca, pediram-lhe que prendesse entre os dentes um pedaço de pano grosso para evitar morder a língua durante o processo. Laura me falou que foi a coisa mais terrível pela qual ela passou. Depois de recuperada, e mais tranquila, Laura colocou para fora o seu outro lado que estava tão passivo, passou a interagir com todos, desde os pacientes à equipe de enfermagem auxiliando-os no que fosse preciso.

Decorridos uns dias o tormento de choque começou a rondar os pacientes outra vez e Laura se pôs a orar com grande clamor pedindo a Deus que a livrasse daquilo e Deus ouviu sua oração. Na hora de submeter-se ao eletrochoque Laura sentiu-se meio que anestesiada, era como se estivesse em um sonho, em um lugar maravilhoso e não sentiu absolutamente nada do choque que lhe fora dado.

Dentro do sanatório ela não perdeu tempo e começou a pregar a palavra de Deus, enquanto fazia amizade com todo mundo, causando admiração a todos que constatavam não haver ali loucura alguma.

Nessa noite Tereza não dormiu. Clamava a Deus em todo tempo. Dias depois minha tia procurou “os cabeças” da família que compunham os Batistas e pediu orientação a eles, inclusive ao tio que era evangélico. Falou também com pessoas amigas que lhe deram uma pequena quantia em dinheiro. Ela o guardou e ficou esperando o momento certo e o momento adequado chegou.

Deus, ouvindo suas orações, enviou o irmão mais velho de ambas, Pedro Batista, que ouviu a história e certificou-se de que Tereza estava certa da atitude que tomaria. Tereza disse com convicção que queria ter a sua irmã por perto a qualquer custo, estivesse ela como estivesse. Seu irmão garantiu que conseguiria mais ajuda e forçaria meu pai a buscá-la. Demorou um pouco para que João se convencesse. Por fim, acatando os muitos conselhos partiu a busca de Laura, um tanto a contragosto e contrariado afirmou:

- Vou buscá-la, mas comigo ela não mora mais. Não sei como ela estará, portanto, você vai ficar com ela para sempre.  Minha tia pediu que ele não se preocupasse, pois ela estava disposta a tudo.

Tereza fazia tudo por sua irmã caçula. Cuidava de sua casa e dos filhos dela que lhes deram muito trabalho. Eram crianças bem adoentadas.

Minha mãe ficou, a princípio, em casa de Tereza. Vez em quando meu pai ia visitá-la, quando estava de bom humor. Outras vêzes ele se irritava por qualquer coisa e voltava para sua casa. Quando ele saia minha mãe ia até o terreiro da casa, ajoelhava-se, isso por volta das 19:00h, encostava a cabeça na parede e ficava clamando a Deus pelo seu casamento e pelo seu lar.

Tereza foi uma pessoa excelente em muitos dos momentos difíceis, como por exemplo, ela procurar alimento matinal para dar aos próprios filhos e não encontrar, a não ser farinha e água, minha tia fazia um pirão com esses dois ingredientes ou simplesmente adoçava água com açúcar, denominada “garapa”, e oferecia aos sobrinhos e filhos em lugar do tão desejado e pedido leite. 

Em casa de Tereza Laura ficava o tempo todo deitada, falava muito do desânimo e do esmorecimento que sentia, porém, estava sempre ligada em Deus. Até que Laura teve um momento de insight e disse para si mesma: “O que eu estou fazendo?! Preciso tomar as rédeas de minha vida. Preciso agir!” Tratou logo de comunicar à sua irmã:

- Tereza, vou arrumar minhas coisas, meus filhos e vou para casa.

- O quê?! Você não se recuperou por completo. E você esqueceu que João parece não lhe querer por lá...?

- Eu não quero me separar, mas se ele não me suporta que saia de casa.

Assim foi feito. Laura restabeleceu-se totalmente, a despeito de certa fragilidade. João amansou-se e os dois tocaram suas vidas.

Muitas foram as dificuldades da vida, inclusive nas primeiras décadas de seu relacionamento conjugal. Mas aprendi com ela que a força maior de um casamento está na mulher, embora seja importante a conscientização de ambos, a Bíblia ensina que a “mulher sábia edifica a sua casa e que a tola destrói”. Minha mãe soube suportar, relevar e acima de tudo perdoar os reveses do casamento, nada mais sério. Nesses últimos anos ela estava colhendo bons frutos de seu relacionamento. Em janeiro de 2010 meus pais comemoraram seus cinquenta anos juntos, principalmente de superação. Havia muito carinho entre eles. Meu pai adorava provocá-la com certas brincadeiras.

Agora os tempos eram outros, minha mãe sentia-se vitoriosa e feliz durante a comemoração de suas bodas. Todo o resto tinha ficado para trás. Tivemos uma pequena comemoração linda. Só não sabíamos que era o começo de um adeus.

Certa feita, relembrando sua infância, Laura nos contou, quando estávamos à mesa tomando café da tarde, como eram as brincadeiras de sua infância. Ela morava em uma casa que tinha um imenso sótão, junto com outras crianças, seus primos, eles corriam à vontade por dentro dele. Brincou até seus catorze anos. Quando as paqueras apareciam escondia as brincadeiras e fingia-se de moça.

A brincadeira principal era a de “casinha” debaixo das moitas côncavas dos pés de mofumbos, que, com suas imensas sombras faziam às vezes de uma refrescante casa de brinquedo.

Os móveis eram feitos de cacos de telhas ou caixas pequeninas, como as de fósforos. As bonecas eram de pano ou simplesmente sabugos de milho, o “cabelo” do milho era o próprio cabelo da boneca, com direito a braços e pernas de palitos.

Laura Vitória, seis anos, neta de Laura, com os cotovelos sobre a mesa e o queixo sobre as mãos unidas, tinha os olhos fixos na avó, bebendo cada palavra da história que minha mãe contava. Com expressão bastante alegre Laura Vitória virou-se para sua mãe Fátima e tascou: “Tá vendo, ‘mainha’, a senhora não me ensina a fazer essas coisas!”.

Todas nós gargalhamos com gosto. Minha mãe falou ainda que as amigas e primas eram as comadres e que gostava muito de brincar com meu tio Vicente. Nessa hora seu semblante ficou sério por ter a convicção de que seu maravilhoso “compadre”, e irmão, já não estava entre nós. Inclusive quando ela foi para Mossoró, anos depois, por ocasião da depressão de tio Vicente, ela relembrou esse fato e perguntou a ele se ele também se lembrava das brincadeiras.  Claro que lembrava. Os dois se divertiram bastante com as lembranças da infância.

Em nós bateu uma tremenda saudade dele, que apertava o peito.

Laura fez de tudo para segurar seu casamento, conseguiu, e passou a ter um sonho: comemorar suas bodas de ouro, o que aconteceu em janeiro de 2010, aliás, quase não acontecia devido um desentendimento familiar entre os filhos, que fez meu pai dizer que por ele não haveria comemoração alguma. Mas ela ficou firme. Não admitiu retroceder. Para ela a festa aconteceria de todo jeito, e aconteceu. Vários parentes compareceram, inclusive, tio Pedro, de Goiânia, com a família. Foi simples, mas um momento muito alegre. No final estávamos todos unidos.

Depois das bodas, e do retorno de alguns parentes, em fevereiro eles viajaram para Mossoró e Interior do Rio Grande do Norte, para visitar parentes.

Ao se aproximar da residência de um familiar, no lugar onde ela nasceu, depois de ter vivido tantos anos naquela aridez, ter morado em casa de sapê, criando um porquinho e algumas galinhas, ela irradiava alegria, vindo pela primeira vez de carro próprio. Sobre o veículo ela falou para eles: “Foi Jesus quem me deu”.

Os familiares faziam algazarra sobre a “lua de mel” do cadal, pois eles eram “bons de cama”: deitavam e dormiam.

Tanto as bodas, como a viagem para o estado de Goiás, como para o Rio Grande do Norte, foram despedidas, mas nem sonhávamos.

O mês agora é fevereiro, o ano é 2011. Sete meses haviam se passado da primeira dor, porque não dizer tragédia, em nossas vidas. É sábado à tarde. Depois da casa toda arrumada, aqui no Lote, percebo um grande vazio e uma enorme solidão. Perambulo um pouco pelos cômodos. Meu pai trocou de roupa e foi fazer um trabalho qualquer em algum lugar. Ele é muito ativo em seus 70 e tantos anos. Quando não há o que fazer ele cria.  Meu irmão Nilson almoçou e foi para casa dele, que fica uns 200 metros. As crianças foram para casa de Auzenate, em Petrolina, voltarão quando se aproximar a noite.

Deito em uma rede vermelha que está armada no alpendre da casa. Uma suave e boa ventilação me acalma. Olho o céu e apuro os ouvidos para os sons próximos. Identifico três cantos de diferentes pássaros. A galinha d’angola bica, insistentemente, as folhas secas da mangueira, caídas no chão. Choro profundamente e digo a Deus:

- “Deus, o Senhor é o meu libertador, a minha salvação, o meu General nessa dura batalha. Socorre-me”!

À minha direita contemplo a enorme mangueira que proporciona uma maravilhosa sombra. Lembro-me que tempos atrás eu escrevi parte de meu diário sobre essa enorme sombra. Enxugando as lágrimas pego meu velho caderno e resolvo dar continuidade ao que minha consciência já havia me lembrado. Pego uma cadeira de balanço sento-me e passo a escrever.

Sete meses. Penso admirada. Olho para os lados e deparo-me com “leão”, o robusto cão vira-lata, preso, usufruindo, também, da mesma sombra (em 2016 ele seria sacrificado, por estar idoso e bem doente, causando-me muita emoção). Um bonito galo branco passeia com seu peito estufado, reina soberano entre as pouquíssimas “galináceas”.  Volto às páginas da velha narrativa e vejo onde a mesma fora interrompida:

Minha mãe na UTI.

Parei um pouco e levantei os olhos para contemplar uma pombinha que se aproximava. Que estranho e interessante. Fiquei imóvel. Ela desfilou um pouco à minha frente. Fiquei analisando sua beleza simples, os tons cinza na sua plumagem. Ela emitiu dois sons do seu canto. Fiquei chateada por não ter trazido celular para fotografá-la.

Levanto devagar. Infelizmente assustei-a e ela voou. Considero um sinal de Deus, pois em situações de dor sempre uma pombinha me apareceu em algum lugar e seu canto me parecia triste, para mim um sinal da presença de Deus fazendo-me lembrar: “Eu estou contigo. Eu estou lhe vendo”.

Voltei os olhos para o meu caderno.

“Minha mãe na UTI...”

Laura Passou cinco dias no primeiro hospital e sete dias na UTI do Regional. Todos os dias íamos visitá-la e lá sempre encontrávamos vários conhecidos. Também chegou a vez de meu pai visitá-la, pela primeira vez.  Ele voltou arrasado. Encostou-se a uma parede, pegou um lenço, começou a enxugar os olhos e falou:

- Aquela ali... Só Deus!

Eu reafirmei que seria Deus mesmo. “Vamos confiar. Deus tem poder para tudo”. Ele fez uma declaração, em meio ao choro a qual nunca ouvimos antes:

- Só Deus sabe como eu amo essa mulher! Afirmou sufocando o pranto. Nunca o ouvira falar dessa forma, embora soubesse que os anos o tinham tornado uma pessoa bem sensível, muito diferente do carrancudo que eu conhecera na adolescência, e continuou:

- Eu tenho dito por aí que fui um pai muito severo, desabafou em um momento raro, e tenho dito também que tenho orgulho dos meus filhos. Emocionamo-nos juntos. Tanto eu, como Auzenate e Nilson, tivemos uma palavra positiva, de fé, e o abraçamos.

Na UTI entrávamos duas pessoas por visita.

O estado de Laura voltou a nos preocupar. Estava muito pálida, amarela mesmo. Havia sido entubada, suas plaquetas baixaram, suas gengivas e dentes estavam enegrecidos. Foi como se ela tivesse assimilado a doença de Fátima. Havia uma bolsa agarrada na cama, ligada a uma sonda uretral, que comportava uma urina escura. Seus pés estavam arroxeados, ficando cianóticos. Um cateter estava preso à veia jugular. Um tubo saía de sua garganta.

Aproximei-me dela, acariciei seu cabelo e falei ao seu ouvido, chamando-a: “Mãe... mãe... Sou eu. A sua primogênita”, como ela se referia a mim algumas vezes, e o inesperado aconteceu, ela abriu os olhos vagarosamente. Não tinha feito isso com ninguém, depois que entrou em coma, voltou a cabeça em minha direção e eu reforcei: “Mãe, estamos todos aqui. Tem várias pessoas lá embaixo. Estamos orando. A senhora vai sair daqui, ouviu?”. Ela balançou a cabeça afirmativamente. Um dia depois o médico não compreendendo minha fala, aconselhou minha irmã Auzenate a não tirar minha mãe do hospital. Não naquele estado, ao que Auzenate rebateu afirmando que não tínhamos nenhuma intenção. Minhas palavras tiveram outro sentido para ele.

Ela voltou a fechar os olhos e eu rapidamente sai dali, pois era a vez de minha prima visitá-la.

Lá embaixo tornei a reencontrar amigos e familiares. Meu pai era uma pessoa bem quista, principalmente nesses momentos se percebia o quanto. Eu conversava com um e com outro. Todos espantados quanto à situação dela.

Algumas vezes vi minha mãe chorando, quando ainda tinha saúde, enquanto ela cozinhava ou enquanto conversávamos. Quando lhe perguntava o porquê, ela tentava desconversar, mas a necessidade de desabafar a traía. Então dizia:

- Ah, minha filha... Eu errei tanto...

- Em que mãe?!

- Em tudo!

Ela queria ser diferente para o meu pai. Gostaria de ter sido uma mulher mais disposta, mais ousada. Arrependeu-se por não ter estudado quando ainda tinha por volta de trinta anos, gostaria de ter aprendido a dirigir. Queria ter feito diferente com os cinco filhos.

As lágrimas dela não me doeram tanto na hora, quanto agora me lembrando desses episódios. Não porque na ocasião eu fosse insensível. Apenas acreditava que ela estivesse naqueles dias em que nos cobramos demais, e que logo, logo, iria passar. Mas não. Ela carregou isso dentro de si por muito tempo, vez ou outra lembrava.

Não saberia dizer se conseguiu se livrar dessa culpa infundada (coisas de mãe). Dizer que ela foi a melhor mãe do mundo seria clichê e um pouco de hipocrisia. Por muito tempo pensei, também, no quanto ela poderia ter sido diferente, ter feito diferente. Mas eu estava completamente enganada, como todos os filhos que assim pensam, em dado momento. Ela era maravilhosa exatamente por ser como era. Adulta, eu compreendia melhor suas limitações.

O quadro de minha mãe não evoluiu para melhor, até que chegou o dia em que os médicos a desenganaram. Ela estava com infecção generalizada e começava a apresentar falência de órgãos. Em casa orávamos, clamávamos em alta voz, e com a face no chão. Comigo havia algo errado. Fui possuída por um grande vazio. Como se meu pranto e minha oração não conseguissem atingir Deus.

Dia seis de Julho de 2010, seis e trinta da manhã o celular tocou. Sonolenta o atendi e fui acordada pelo choque que me causou o pranto de minha irmã Neide, falando a queima roupa:

- Detinha! Detinha (meu apelido)! Ah meu Deus... Disse ela, sem se conter.

- O que foi?!

- Ligaram do hospital...

- Mãe piorou?!

- Mãe entrou em óbito, Detinha! Falou ela quase gritando.  Velozmente sentei-me na cama. Ela continuou:

- A moça me ligou e perguntou o que eu era dela... Então ela disse que mãe havia entrado em óbito. Eu falei: Não... Isso não é verdade! Você ligou para o número errado! Mas ela passou os dados e foi confirmado... Meu Deus... O que a gente vai fazer?! Precisei quase gritar para que ela se acalmasse.

Não consegui chorar. Fui tomada por um sentimento de incredulidade. Sentada na cama envolvi a cabeça com as duas mãos e desci-as, lentamente, pelos cabelos. “Mas Deus...”. Pensei comigo. A seguir liguei para Auzenate, que ligou para Nilson, que se encontrava na roça com pai, as crianças, e Fátima. Ficamos de nos encontrar todos em minha casa, em Petrolina.

Auzenate não demorou a chegar. Juntamo-nos e fomos à casa de Neide. Lá, oramos, pedimos forças a Deus, e ficamos em silêncio, com os olhares parados, em algum ponto, como se houvesse outras opções além das providências cabíveis e de praxe nessa situação.

Voltamos para minha casa, falo assim por força de expressão, a casa não era minha, mas de meus pais, mas eu morava nela. No caminho passamos na casa de tia Tereza, irmã de minha mãe, e demos a notícia. Ela e minha mãe eram muito unidas, sempre uma apoiando a outra. Minha mãe, quando vinha do projeto, ficava mais na casa da irmã do que mesmo comigo, e eu a compreendia demais. Brincávamos dizendo que a casa de sua irmã era seu hotel. Ela adorava.

Por volta de onze horas meu pai chegou, com meu irmão Nilson, seus dois netos e sua nora. Ele estava bem abatido e fechado. Ele nunca foi de expressar grandes sentimentos. Acho que não saberia nem como o fazer, a não ser sentimentos leves e de forma brincalhona. Foi o golpe mais duro que ele já sofreu nesses seus 70 e tantos anos. Demos-lhe um chá e o fizemos deitar.

Auzenate tomou todas as providências junto à funerária. Por volta das quinze e trinta da tarde seguimos o carro da funerária que conduzia o corpo de minha mãe.

O cortejo passou pela Avenida da Agrovila, denominada Mata-Burro. As pessoas paravam para olhar de maneira meio reverente, embora não soubessem quem ia ali.

Meu pai ia no carro de Auzenate, eu no carro de pai, conduzido por Nilson. No som do carro tocava os hinos de “Voz da Verdade”, que marcariam para sempre esse momento, em especial o hino “Escudo”, parecia ter sido feitos para esse momento. Eu passei muito tempo sem ouvir “Escudo”.

O corpo de minha mãe foi velado na sala de nossa casa no Projeto de Irrigação de Maniçoba, interior de Juazeiro, BA, muita gente compareceu.

Uma parte difícil é a hora de fechar o caixão, de madrugada foi feito isso. Parece que a pessoa, embora morta, está se distanciando mais ainda de nós, que queremos fazer de tudo para tê-la mais perto por mais umas horas. A família foi chamada. Filhos e netos cercaram o caixão. Percebi que faltava Fátima e chamei-a. Ela aproximou-se do féretro. Vestia saia e jaqueta jeans. Debruçou-se sobre o corpo de minha mãe e chorando repetiu: “Minha sogrinha, minha sogrinha...”. Seu enorme cabelo pendeu para o lado.

À parte nossas dores, nos despedimos de nossa mãe pela primeira vez nesse dia.

Na manhã seguinte a fileira de carro fez o mesmo percurso de volta a Petrolina.

Minha tia Tereza pediu a seu filho que conduzia seu próprio veículo, que ultrapassasse os demais e ficasse logo atrás do carro da funerária, queria estar o mais próximo possível de sua irmã nessa última viagem. Assim foi feito.

Logo pela manhã a enterramos no cemitério Campo da Paz. Ela tinha 67 anos.

No dia seguinte, ah, o dia seguinte...  Após um acontecimento desses... Havia silêncio em casa, saímos dos quartos e nos sentamos silenciosos em alguma parte da copa.

Fátima perguntou a mim e a Auzenate o que iríamos fazer com a roupa de minha mãe. Era preciso dar um rumo a elas, uma vez que isso fazia meu pai sofrer toda vez que abria o guarda-roupa, poderia aumentar mais ainda seu sofrimento. A solução foi recolher todas. Fizemos alguns pacotes e os guardamos em casa de Fátima. Mais tarde faríamos uma doação.

Que vazio que a morte de um ente querido nos deixa... Esse vazio gera um terrível espanto. Intimamente você olha para um lado, depois para o outro e se dá conta que seu familiar não está mais em volta. Segue-se um enorme silêncio e uma saudade dolorosa.

“Cadê sua voz, cadê seu gargalhar, mãe. Virou Pó mãe. Pó...”

Nos meses seguintes eu parava vez ou outra defronte a uma vitrine e pensava com os olhos cheios de lágrimas: “Mãe, a senhora ficaria linda com essa blusa. A senhora iria amar essa bolsa. É a sua cara”. Outra hora lembrava-me da viagem que fizemos juntas para Mossoró. Eu ficava muito “ressacada”, meio enjoada no ônibus. Nem descia. Ela perguntava o que eu queria e ralhava:

- Ah, você e Tereza, sua tia, são iguais. Não querem nem descer. Eu fico trazendo tudo. Mas sempre perguntando o que eu queria, aí vinha: ora com café, ora com laranja que era para “enjoo”.

Na volta um rapaz, mais novo do que eu me paquerou e tentou uma aproximação. Ela ria de um jeito maroto.

Graças a Deus por ter a certeza que ela partiu daqui “quite” com Deus. O que faltava Ele completou nos dias de sofrimento, pois nem sempre estamos perfeitos. Não que o sofrimento nos purifique, mas para quem é humilde e temente a Deus é um momento que nos proporciona autoanálise espiritual mais aprofundada.

É doloroso saber que nada mais posso partilhar com ela, mas consola-me a certeza de que nos encontraremos, se eu permanecer fiel a Cristo, tal qual ela, até o fim.

Sou uma mulher com mais de 50 anos que às vezes encontra-se com o olhar vagando a procura de sua mãe. Olhar esse que sempre se depara com o inacreditável.

A dor da perda de minha mãe causou-me os prantos mais solitários de toda a minha vida.

Por uns segundos fico meio aturdida e quero saber: “É mesmo verdade?!” Mas aí, meio que balanço a cabeça para desembaralhar os pensamentos. Não quero ficar mergulhada nesse fosso.  Ela própria recriminaria. “Sua benção, mãe”.

Alguns meses depois lhe escrevi esse poema:

 

ORFANDADE

                À Laura Batista, mãe querida. 

Pastora de rebanho filial.
Seu bastão conduzia
As desalentadas ovelhinhas
De seu rebanho.
A uma impunha-lhe o cajado,
Impedindo ultrapassagem
Às perigosas pastagens.
Um leve toque,
A cabeça de outra erguia
Para além-horizonte.
Partiu a guardadora de rebanhos.
Foi pastorear
Na campina celestial.
Deitou em campo funesto
Apetrechos de ovelha líder.
Sequer olhou para trás,
Ante novos prados tão convidativos.
Tivesse-o feito,
Ver-me-ia, 
A mais desprotegida dos cordeirinhos,
Clamando esse desmame perene.
Tenho coração de luto enegrecido.
Tão pequena era eu,
Nada sabia falar.
Tanto não fora dito!
Veloz correu o tempo,
Nem o vi passar.
É imperativo traçar novo rumo,
Descobrir novas planícies.
Tem missão mais elevada,

A transcendente,

Pelo Sumo Pastor

Convocada. (Julho/2010).

 

Capítulo Segundo: dó-re-mi-fá-Fafá... Dó...

 

Três ou quatro dias depois, ficou decidido que Neide ficaria no lote cuidando de nosso pai, de nosso irmão, Nilson, de meus sobrinhos e de minha cunhada Fátima, uma vez que esta estava impossibilitada de assumir grandes afazeres domésticos. Inclusive, ela passaria a vir com mais frequência à cidade para fazer baterias de exames e de compatibilidade de medula para que fosse efetuado o transplante.

Ela ficava indo e vindo, ora fazia exames ora vinha para a emergência tomar sangue, e nós parecíamos meio dormentes ante os trâmites impostos pelos médicos. Alguns amigos tentaram nos alertar, mas Nilson, na qualidade de esposo, preferiu acatar o que os médicos determinavam.

Tentamos tocar nossas vidas. Fátima estava de viagem marcada para Salvador, juntamente com seus irmãos, para que fosse feito o exame de compatibilidade medular. 

Na data marcada da viagem, a noite, eu, Nilson e Auzenate, fomos acompanhar Fátima e seus irmãos. Eles iam em um micro-ônibus que os levaria até Salvador. O veículo estava estacionado em uma velha estação reformada. Na verdade era o ponto de apoio para tratamento fora de domicílio.

Todos estavam alegres e procuravam se acomodar da melhor forma possível. Despedimo-nos deles e ficamos esperando o micro-ônibus sair.  Nilson, do lado de fora, agarrava-se na janela enquanto pulava e roubava “selinhos” de sua esposa, fazendo a todos rirem.

Os irmãos dela, sete a oito, passariam por uma bateria de exames. O resultado sairia em alguns dias.

Em Salvador aproveitaram o momento para conhecer a praia. Lá tiraram muitas fotos.  Fátima estava linda, na maioria delas. Registrou o momento em que conhecia o mar pela primeira vez.

Fátima voltou para a roça e dias depois deu entrada, outra vez, na emergência para tomar sangue já que a sua hemorragia não cessava. O médico nos alertou para o fato de o transplante não poder ser realizado enquanto ela estivesse sangrando. Isso a debilitava, dia após dia, e a deixava um pouco mais pálida. Porém, ela não perdeu peso. Seu corpo permaneceu da mesma forma de antes da doença.

Chegou o dia em que apenas tomar sangue não estava resolvendo o problema dela, precisou, então, ser internada no Hospital Regional de Juazeiro.

Nessa noite, referida lá no início da narrativa, eu estava indo substituir minha irmã Auzenate. Nilson simplesmente resolveu dar plantão ficando todo o tempo dentro do carro estacionado no hospital.

Eu cheguei minutos depois de Fátima dar entrada no centro cirúrgico para uma pequena incisão na veia jugular, uma vez que as demais veias estouravam com a invasão das agulhas. Auzenate tinha os olhos vermelhos. Ela havia dado uma desculpa para a enfermeira que conduzia Fátima, e foi ao banheiro chorar escondida. Ela foi logo me dizendo:

- Ah, eu já chorei tanto... Você não tem noção.  Falou ela deixando-me apreensiva.  Ela foi tão furada... Complementou.  Não conseguiram nenhuma veia em lugar algum. Foi preciso tentar a veia jugular, para isso precisou dar entrada no centro cirúrgico. Meu Deus até quando?! Interrogou ela para si mesma, tentando disfarçar o choro. Logo nos viramos para trás. Fátima estava voltando para o quarto, de seu pescoço pendia um cateter. Disfarçamos.

Auzenate me deu instruções e se foi.

Fátima estava tranquila e serena, mas seus braços tinham imensas manchas roxas, algumas quase pretas. Eram as chamadas “equimoses”, consequência das plaquetas baixas. Estava prescrito sangue e plaquetas durante essa noite.

Nesse ínterim os exames de compatibilidade de medula, realizado nos irmãos, chegaram.  Dois deles foram considerados cem por cento compatíveis. Isso nos trouxe uma grande surpresa dada a raridade do resultado, porém, enquanto ela estivesse sangrando nada poderia ser feito.

Dias depois, na noite de sexta-feira, foi minha vez de ficar novamente com ela. Fátima não parecia estar tão doente. Conversamos normalmente. Em dado momento fixei o olhar nela, que notou e quis saber: “O que foi cunhadinha?” Perguntou-me. “Nada... É que eu estou tão preocupada com você...”. “Eu estou bem”. Afirmou sorrindo.  Eu disfarcei o quanto pude, e com passos lentos me dirigi ao banheiro, escorei-me na parede do mesmo, quando dei por mim estava sentindo uma forte agonia, provavelmente desmaiaria ali. Ela estava deitada. Rapidamente voltei para o quarto, deitei-me na cama ao lado e fechei os olhos.

Pela madrugada ela começou a se queixar de uma dor na virilha que não passava apesar dos analgésicos que havia tomado.

No dia seguinte a irmã dela ocupou o meu lugar.

Fátima continuou piorando. O sangramento não cessava e quase uma junta médica a visitava.  “Seu estado é muito sério”! Afirmou o médico para ela. Fátima lhe respondeu: “Doutor, eu estou nas mãos de Deus. Seja feita a vontade dEle”. Disseram que os médicos se espantavam com a ausência de desespero que havia nela.

No domingo à tarde meu irmão foi vê-la e ao chegar lá ficou espantado. O inchaço da perna dela estava enorme.

O médico explicou para meu irmão que era trombose, que teve início com aquela dor na virilha. Agora ela sentia uma das dores mais insuportáveis. A torcida era para que o trombo não subisse para os pulmões. Fátima se contorcia na cama gemendo constantemente. Ela estava frágil, muito frágil.

Meu irmão chorava muito, mas sem alarde, enquanto acariciava os cabelos dela e passava um gel à base de cânfora em sua perna. Isso não surtia o mínimo efeito.

Nessa mesma tarde a família e amigos estavam todos reunidos no jardim do hospital. Eu me encontrava em casa.

Fátima estava em uma dependência do hospital semi-intensiva. Foi feito novo exame e alguém escutou a enfermeira dizer que a vida dela estava por um fio. Não sabia como ela estava viva. Talvez por compreender isso a enfermeira tenha permitido, no comecinho da noite, que os pais e os irmãos se despedissem dela, pois ela subiria para UTI.  Um a um seus pais e seus irmãos a abraçaram chorando. Minha irmã Auzenate estava lá, e pôde também abraçá-la, ela pediu:

- Tire-me daqui...

Ela subiu para UTI. A maca em que estava passou defronte a um enorme vidro. Ela levantou a cabeça e acenou para todos.

Só então acordamos, e mil planos para removê-la teve início.

Talita, minha sobrinha, me contou, quando passou uma noite com Fátima, de como foi difícil assistir ao sofrimento dela e de Nilson. Ele ficava indo e vindo de um canto a outro do quarto, sentindo-se a mais impotente das criaturas, ora clamava a Deus em voz baixa ora chorava ora dizia a ela que se pudesse transferiria esse sofrimento para ele. Em dado momento Fátima falou:

- “Fifi”... (apelido carinhoso para “filho”, “filhinho”, que ela usava com seu marido). Eu conversei com Deus...

- Sobre...? Nilson quis saber.

- Sobre tudo isso... Sobre esse sofrimento... Eu não aguento mais. Ou Ele me cura ou me leva...

Nilson lhe respondeu:

Pois ao Senhor eu lhe entrego.

Depois eu considerei se isso não foi um erro. Será que ele não deveria ter se agarrado mais a "orla do vestido de Jesus"?

Nilson havia me relatado, dias atrás, que teve a coragem de perguntar a ela se ela tinha medo da morte. Sorrindo ela respondeu:

- Tenho não... Só assim vou me encontrar com minha sogrinha, falou com um sorriso tímido.

Nossa prima Alcione teve um sonho com Fátima, estando ela em um culto no nosso lote, onde Fátima se despedia, pois iria fazer uma viagem. Alcione entendeu isso como um prenúncio e quis saber se ela tinha medo de morrer, ela respondeu que não. “E seus filhos?” Interrogou Alcione. “Deus cuida”. Foi a resposta dela.

Nilson e Fátima se conheceram na agrovila onde havia pequenas e várias residências cedidas, gratuitamente, para os primeiros colonos que ganharam seus lotes, seus pequenos hectares de terra. Nilson morava com meus pais, no lote, na roça, uns dois quilômetros de distância da vila.

Certa noite ele estava em casa de um amigo quando Fátima passou defronte indo a algum lugar. Seu olhar logo se aguçou em direção “aquele mulherão”. Ela era um pouco alta com um corpo que chamava atenção.

Logo quis saber quem era ela. O amigo zombou de leve, achando que ele estava sonhando alto demais. Nilson ficou atento e logo ela retornou. Como desculpa para segui-la, ele disse ao amigo que ia dar uma volta. Viu quando ela parou junto a uma amiga dele, mas esta logo se afastou, deixando Fátima à espera.

Nilson aproximou-se dela, perguntou se podia apresentar-se. Ela consentiu. Ambos se apresentam. Logo chega a tal amiga e os três ficam a conversar. Poucos minutos chega Neide, nossa irmã. A conversa continua, mas Fátima e a amiga se retiram. Nilson fica muito surpreso com o fato de Neide conhecê-la e Neide informa que ela está morando com a irmã, vizinha à sua casa.

Nilson vai para casa de Neide. Não demora muito Fátima sai fora, ele acena para ela. Ela corresponde e sorri. Começa aí a amizade dos dois. Até que, certo dia, Nilson chega para ela e diz que tem algo importante para falar e lhe fala namoro. Encontros depois Nilson diz para ela que é crente, que está namorando para casar, que não está para brincadeira. Esperava que se ela não pensava em compromisso sério falasse logo, pois ele não gostaria de ser magoado e nem de magoá-la. Ela concordou e falou com ele nos mesmos termos.

Fátima morava na vila, mas sua família, que era numerosa, morava em outro vilarejo um pouco distante. Sempre que podia ele ia, com ela, visitá-los. Lá eles faziam uma “farra”. Nilson levava o violão, cantava bastante música gospel e pregava a Palavra de Deus, a Bíblia, para a família que era bem católica. Pouco a pouco toda a família foi se tornando crente. Uns doze, mais ou menos.

Parece-me que ficou o pai dela por último. Ele sofria de uma dor de cabeça crônica há alguns anos, que o incomodava o tempo todo. Certo dia um grupo de “irmãos” foi exclusivamente para orar por ele. Eu estava presente.

Puseram as mãos em sua cabeça e oraram. Ele disse que sentiu uma leve queimação na cabeça, descendo pelo pescoço e a dor sumiu na hora. Nunca mais ele a sentiu, isso tem uns vinte anos. Com esse milagre logo ele aceitou Jesus, tornou-se crente também

Nilson e Fátima casaram-se em 1997. Apenas no cartório. Nenhum dos dois tinha condição para fazer festa e ela o aceitou sem ele ter nada. Foram morar, onde ele já morava: com meus pais. Nesse tempo não havia nem reboco na casa.

Como meu pai tinha direito a uma casa na vila e não tinha recebido, foram atrás dessa aquisição. Demorou mais de ano, contudo, conseguiram e eles puderam obter o lar deles, que ficou muito bom.

Tempos depois surgiu a possibilidade de Nilson comprar um pedacinho de terra anexo ao lote de meu pai. Venderam a casa na vila e construíram outra nessa terrinha.

Tem uma parede lá, de cor mostarda, que foi a própria Fátima que pintou, e muito bem pintada. Foi ótimo vê-los tão próximos de meus pais. Eles davam muito atenção a eles e meus pais a amavam como se ela fosse uma filha.

Os primeiros sintomas da doença surgiram quando ela fazia o percurso, entre a casa de meus pais e a dela, cansando-se facilmente e sentindo dores nas pernas. Ela até quis saber se sua sogra se cansava dessa maneira. Laura disse que não.

Ela cantava na igreja. Tinha uma boa voz. Suave.

Era domingo, dia oito de agosto de dois mil e dez, por volta de sete da noite. As crianças, Laura Vitória (a Laurinha), então com nove anos, e João Victor, com seis anos, estavam em casa de Auzenate, que ficava poucos metros da minha. Eu estava arrumada para ir para a igreja sem ter consciência do grande peso que estava sendo tudo isso, não sabia que a família estava toda defronte ao hospital.

Auzenate me ligou e informou que estavam planejando a remoção de Fátima. A primeira providência foi ligar para alguns hospitais que faziam transplante para saber da possibilidade de recebê-la. Os médicos dela permitiriam desde que houvesse uma UTI aérea.

Os irmãos dela não eram ricos, mas eram comerciantes com certo poder aquisitivo, agora que presenciaram o sofrimento da irmã, decidiram que fosse feito tudo para beneficiá-la.

Auzenate também me informou que Nilson estaria vindo para minha casa e que o mesmo estava muito abalado.

Fiquei em expectativa e o aguardei. Poucos minutos depois ouvi um barulho no portão. Sabia que era ele. Ele adentrou a casa e dirigiu-se à mesa. Perguntou para onde eu ia. Respondi-lhe que estava querendo ir para a igreja. Ele assoprou exausto. Pegou uma fruta amarela de parafina, que estava em um prato sobre a mesa e disse:

- Oh... Você não sabe... Fafá está muito mal. Minha esposa está dessa cor. Falou segurando a fruta e soltou um pranto alto. Eu corri e fechei portas e janelas. Não queria assombrar os vizinhos, e quis proporcionar-lhe privacidade.

- Ela está tão amarela! É tanta dor! A perna está tão inchada! O médico disse que vamos torcer para que o trombo não invada os pulmões.

Meu irmão soltava urros, enquanto falava:

- Deus, cura minha esposa! Deus, eu já lhe clamei tanto! Deus, eu a coloco em suas mãos, poupa minha mulher daquele sofrimento.

Nilson acalmou-se após dar vazão à sua grande dor sufocada todos esses dias, apesar das muitas vezes que chorou.

Eu desisti de ir para a igreja. Por volta das vinte horas e trinta minutos, nós adultos fomos para frente do hospital. Auzenate iria reunir os irmãos dela e mostrar as informações conseguidas para a transferência de Fátima.

A frente desse hospital é bem ampla. Havia duas árvores grandes, frondosas, de troncos largos, e há uns bancos de cimento, no modelo de banco de praça. Várias pessoas se encontravam ali. Além da família estavam os crentes da igreja que Fátima congregava, e dentre eles as irmãs do prefeito de Juazeiro, pela segunda vez nos apoiando.

Nilson transitava entre um e outro. Carregava uma bolsa de mão, dentro dela sua inseparável Bíblia e tentava consolar os cunhados, e em especial sua querida sogra, dizendo:

- Está tudo nas mãos de Deus. O que Ele fizer será bem feito.

Passado algum tempo, às vinte e uma horas e mais um pouco, Auzenate foi chamada ao segundo andar. Quando o médico a viu espantou-se:

- Você...?! Eu já lhe conheço?

- Sim. Eu sou filha de D. Laura, que também esteve nessa UTI, trinta e dois dias atrás. Agora estou aqui por causa de minha cunhada, Maria de Fátima.

- Ah, é mesmo... D. Laura...

Enquanto Auzenate estava lá em cima eu estava próxima de Nilson. Nesse momento chegou Carmem, uma enfermeira, amiga de muito tempo que nos ajudou bastante com Laura, minha mãe. Ela insistiu para que Nilson fosse à recepção aferir a pressão, ele se negou veementemente. Ela insistiu mais ainda. Vendo isso eu tremi em extremo. “Será que havia acontecido alguma coisa?!” Estranhei. Um calafrio subiu pelo meu corpo, que deixou minhas pernas meio bambas. Mas ela insistiu tanto no fato de que era apenas para aferir, por precaução, considerando os abalos que ele vinha sofrendo, que isso me fez relaxar um pouco.

Nilson dirigiu-se à recepção para preenchimento de uma ficha. Eu o segui devagar, deixando-o se distanciar. De repente vejo uma das irmãs de Fátima sendo abraçada por uma das irmãs do prefeito Isac. Aproximei-me achando que ela estava sendo consolada. Mas a irmã dizia: “Meu Jesus... Minha irmãzinha...Minha irmãzinha...”

- O que foi?! Interroguei. Aconteceu alguma coisa?! A irmã do prefeito balançou a cabeça afirmativamente.

- Ela morreu... Ela morreu... Completou a irmã de Fátima, falando baixo.

- Oh, meu Deus! Não diga uma coisa dessas...

Olhei para onde estava a família. Estava alheia ao que acabara de ocorrer. Fui em direção a eles. Olhei para o alto, pude ver Auzenate na janela do segundo andar, chorando de forma contida. Fiz aceno para que ela descesse. Ela espalmou a mão num gesto de quem pede para eu aguardar. Auzenate estava pensando em como daria a notícia.

Tirei os olhos de Auzenate e segui rumo à família, pude observar que alguns já estavam chorando. Na verdade, segundo apuramos depois, certo conhecido, sabedor da notícia, foi logo falar aos familiares. O irmão mais velho de Fátima achou horrível e precipitada a atitude dele, uma vez que ninguém tinha intimidade com o tal.

Eu não estava perto quando Nilson recebeu a notícia, mas me disseram que ele disse:

- Deus fez a vontade dele. Não conseguiu chorar.

Minutos depois ele disse a mim que na hora em que ouviu a notícia, sentiu como se tivessem soprado em seu coração. Meses depois ele não se lembraria desse fato quando eu voltei a falar do assunto.

Depois disso só o vi chorar, controladamente, no enterro. Todos se espantavam e diziam: “Como ele é forte”, mas eu achava que Deus o visitara de alguma forma, começando com a catarse daquele pranto e com o tal “sopro” na hora de receber a notícia. Mas também essas pessoas não estavam presentes quando derramamos imensos prantos ao longo dos meses.

Abraçados chorávamos. Uma das irmãs dela desfaleceu. Tivemos que colocá-la deitada no banco de cimento.

A mãe de Fátima chorava de maneira inconsolável enquanto falava baixo:

- Minha filhinha... Minha filhinha...

Nilson abaixou-se para falar com ela e a consolou com um pequeno discurso. Ele é uma pessoa bem articulada e se baseou na Bíblia para confortar sua sogra. Todos se admiravam e diziam: “Como ele está bem!”.

Eu comecei a ligar para algumas pessoas. A principal delas foi minha irmã Neide que estava no Lote, com meu pai João. Neide simplesmente se descontrolou, pelo visto nosso pai estava perto dela, pois a ouvi dizer:

- Pai, Fátima morreu... Morreu!

Precisei gritar com ela pedindo calma, pois ela deveria considerar a idade de pai. Infelizmente ficaram várias pessoas que não foram avisadas, por esquecimento meu.

Mais ou menos quatro horas da manhã estávamos chegando com o corpo no Lote. Vários carros da família, e de alguns amigos, acompanharam o carro da funerária.

Antes de descer pude avistar meu pai no alpendre da casa que nos esperava para esse tão doloroso reencontro. Quando ele se aproximou de Nilson foi logo dizendo, de forma calma:

- Isso é uma tragédia! Por que Deus fez isso com a gente...

Nilson o abraçou e o confortou bastante, pedindo que ele não culpasse Deus, pois tudo que Ele faz é bem feito, por mais que nos cause dor. Reafirmou.

Dias depois minha tia Tereza confidenciou-me que foi inevitável não pensar na frase de seu cunhado, décadas atrás. Será que o mundo de João havia, agora, caído a metade?

Logo cedo as crianças chegaram com Auzenate, que já havia tido uma conversa com eles. Eles não desceram do carro de imediato, aguardaram Nilson vir ao encontro. Quando eu me aproximei do carro pude ver João Victor com a cabeça inclinada no tórax do pai, enquanto soluçava feito um adulto desconsolado.

Na noite em que Fátima morreu aconteceu uma coisa maravilhosa com Laurinha, sem ela saber da morte de sua mãe. Ela sonhou que um homem aproximava-se da cama. Em pé, estirou os dois braços, e com as duas mãos espalmadas orou por ela. Deus mandou um anjo visitar as crianças.

Quando Auzenate conversou com João Victor, ele falou que já sabia.

Eu não vi Nilson chorar durante o velório. Ele tinha o olhar distante. A mão esquerda dobrada na cintura, apoiando o cotovelo enquanto a mão direita segurava o queixo. Evitou o tempo todo aproximar-se do caixão.

Chegou a hora de decidir onde Fátima seria enterrada, se no pequeno cemitério local ou na catatumba de minha mãe, em Petrolina. Todos foram unânimes em querer que ela fosse enterrada junto com minha mãe.

No enterro Nilson chorou, de maneira contida, mas mantinha a mesma distância que havia no velório.

Na hora exata do enterro ele fez questão de pronunciar a frase de Jó, personagem bíblico:

- “O Senhor me deu, o Senhor tomou. Louvado seja o nome do Senhor”.

Sob aplausos a enterramos, e cada um tomou o rumo de suas vidas.

Nos primeiros dias que se seguiram foi a vez de nos desfazermos das roupas de Fátima. Dias depois meu irmão soltaria prantos homéricos. Passaram-se uns três meses sem ir a casa dele.

Completou dez anos da morte dela, agora em 2020. Ele ainda não se casou.

Meses depois fiz também um poema para Fátima.

 

OVELHA FAFÁ

À minha querida, amada e ex-cunhada,

em dias muitíssimos difíceis.

 

Tosquiada

Foi a ovelha.

Tosquia “mielogramada”,

“Mielodisplásica”

Nos excessos de Blastos.

Ovelha ferida!

Marcada a sangue: “JC”.

Mesmo em sangria

Não abriu a boca.

Não tosquenejará

O Pastor

Que lhe aguarda.

Dó-ré-mi-fá...

Fafá...

Triste dó.

Fim de uma canção terrena;

Início de uma sinfonia celestial. (Agosto/2010).

 

Neide estava namorando meu primo que mora em Brasília. Depois de seis meses meu primo a pediu em casamento. Ela preocupou-se e quis saber como as coisas ficariam.

Eu, Auzinetti, assumi a responsabilidade. Primeira providência seria tentar uma licença junto a Escola onde trabalhava. Consegui.

Neide, depois de seis meses, foi para Brasília e lá se casou. Eu fiquei durante um ano no lote, pois não tinha como renovar minha licença.

Auzenate vinha de quinze em quinze dias para o lote, para que eu viesse para Petrolina, para que tivesse uma “folga” e resolvesse minhas coisas.

Quando saí de vez arranjamos uma “secretária” doméstica, que ficou auxiliando meu pai.

Quanto a Nilson, quase um ano depois ele resolveu tomar as rédeas de sua vida e voltou para sua casa, onde, junto com seus filhos tocou sua existência.

Depois de deixá-los fiquei vindo aos finais de semana.

Quando voltava para casa eu saía bastante afetada pela situação daquelas vidas. A solidão de meu pai naquela casa isolada, as duas crianças... O Desengano de meu irmão...

Quando passava de moto defronte ao ponto de apoio e lembrava-me da imagem de Nilson pulando para roubar beijos de Fátima eu chorava convulsivamente, sabendo que estava protegida pelo capacete e que ninguém veria.

Muitas vezes olhei para o passado e via minha mãe chorando por causa de Fátima e pensava: “Meu Deus, por que não parei tudo para consolá-la, abraça-la...?! E quando ela fez um grande esforço para me ver, naquela UTI, por que eu não falei mais com ela? Por que não pedi que ela não me deixasse? Ela sempre conseguia tanta coisa com Deus... Por que não a cobri de beijos? Por que não disse que a amava, naquele exato momento?”

Pensava também na imagem que minha sobrinha Talita fez formar-se em minha mente: “Jesus... meu irmão passando cânfora na perna da esposa...! Era trombose avançada, e ele ingenuamente passava cânfora!”.

Depois tomei consciência que era para minha mãe estar sedada, quando falei com ela naquela UTI. Isso só me fez entender que o sofrimento era ainda maior. Mas eu não tinha consciência desse fato para poder comunicar aos médicos.

Mas, como nos diz a letra de uma música evangélica (hino): “Se Ele faz, Ele é Deus. Se Ele não faz continua sendo Deus”. É assim que eu creio.

Três anos depois da morte de minha mãe, meu pai, com mais de setenta anos, amasiou-se e tempos depois se casou outra vez com Maria Adelma, uma ribeirinha.

Dez anos faz da viuvez de meu irmão Nilson (2020), ele ainda não encontrou uma companheira.

 

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