06 - MARGARIDA ALVES
06 - MARGARIDA ALVES

Flor do deserto

O orfanato

Margarida acabara de chegar à cidade de Martins. Estava ali a convite de um de seus filhos, João Helder, que como ela, queria conferir parte de algo muito importante na vida de sua mãe, do qual ouvira muito falar.

Era um dia do ano de 1996, diferente de todos os que ela tinha experimentado. Emoções mil afloraram à volta daquele lugar. Era sábado e fazia um dia lindo. O sol parecia conivente e enchia de brilho o matagal em volta. O velho orfanato estava fechado, mas uma senhora prontificou-se a abri-lo, dado o inusitado da visita. A cidadezinha de Martins, em Rio Grande do Norte, onde ficava o antigo orfanato, podia até ter mudado, mas certos pontos eram reconhecíveis: a pracinha, a igreja e o velho prédio do antigo orfanato.

O burburinho de mais de cinquenta anos atrás estava vívido na memória de Margarida. Podia ouvir cada voz, cada gesto, cada relance de seres que, como ela, tomaram outros rumos. Agora, de real mesmo, só o silêncio reinante. A estrutura, que outrora fora um orfanato, estava um tanto afetado pelas intempéries e meio abandonado. Embora tivesse sido transformado em uma espécie de mine museu, pouco era visitado.

Olhou cada compartimento e procurou dividir as lembranças com Raimunda, sua irmã, que, apesar de mais velha pouca coisa se lembrava. Teria Raimunda bloqueado essas memórias como forma de defesa às más recordações? A própria Margarida ficou espantada com a enxurrada de lembranças que seus sessenta anos permitiam.

Subiu a escada e foi dar em uma pequena varanda, que permitia boa visão da área externa. Olhou lá em baixo e falou para sua irmã:

- Raimunda, lembra-se de quando colocávamos a “beldroega” (hortaliça) nos bolsos e a jogávamos lá em baixo?

Sua irmã absorta nos próprios pensamentos nada respondeu.

Voltou a percorrer outros cômodos. Agora se encontrava no “refeitório”, podia ouvir em sua mente, outra vez, o alegre burburinho. Aproximadamente trinta crianças se reuniam naquele local. Não havia tanta algazarra devido à severidade das freiras. Apoiada na guarnição da porta, seus olhos percorriam o cômodo e pareciam duas câmeras que davam flashback: passado; presente, presente; passado.

O que mesmo a trouxera ali quando ela era ainda uma criança? Seu irmão mais velho, persuadido pelos tios, decidiu colocá-las, a ela e a irmã, em regime de internato, visitando-as duas vezes por ano. Não. Não era exatamente aí que tudo começava. O início de tudo se dera com uma grande dor. Era preciso voltar mais no tempo. Foi até a porta que dava para a pequena varanda, contemplou ao redor, até que seu olhar parou no nada. Suspirou fundo e sua mente, numa velocidade espantosa, voltou no tempo.

Era novembro de 1940, quando seu pai adoecera terrivelmente, padecendo de fortes dores e febre alta. Dali a poucos dias seria dezembro, mês das romarias, as muitas festividades eram constantes e havia a possibilidade de seus pais ganharem uns trocados, nas quermesses, com uma banquinha cheia de bebidas diversas, principalmente aguardente e vinho. O pai de Margarida, avô dessa narradora, que já estava adoentado, havia tomado café e logo em seguida tomou vinho. É o que contam. Isso fora suficiente para os supersticiosos colocarem na conta dessa mistura a causa de sua doença. É certo que ele piorou, e o coração daquele que só tratava os outros pelo apelido carinhoso de “coração”, prostrou-se, não mais reconhecia as pessoas, vindo a falecer. Era um homem sensível, emotivo, de choro fácil. Era paciente e muito calmo.

Sua esposa, Maria, era o oposto. Mulher decidida. Fosse o que fosse rapidamente selava o cavalo, colocava um dos filhos na garupa do animal, cavalgava a toda, se necessário, e tudo resolvia. Em nada se embaraçava. Sua fama de mulher severa era conhecida de todos, trazia os filhos à rédea curta, usando termo deles. Foi para ela muito duro a perda do marido, além disso, estava no sexto mês de gravidez. Tudo se agravara, agora que estava viúva, inclusive seu parto.

Três meses depois, no dia de “dar à luz” foi chamada, como era de praxe, a velha parteira acostumada a fazer todo tipo de parto. Mas, em especial naquele dia, ela desconhecia certos métodos que pudessem ajudar sua parturiente, tão conhecida de outros nascimentos.

O parto foi normal, contudo a placenta não não fora expelida, provavelmente colada na parede do útero (placenta acreta, acretismo placentário), ficando dentro da mãe por três dias. A parteira nada fazia e nem sabia que atitude tomar, além de dar chás e olhar entre as pernas de sua paciente, e vez ou outra massagear-lhe a barriga, enquanto baforava seu cigarro de palha. Ela não sabia como retirar aquela placenta.

Maria tinha pavor de médico, decretou, veementemente, que ninguém fosse a busca de um. Mas ao terceiro dia, seu filho mais velho resolveu desobedecê-la e partiu escondido. Certa pessoa, ao ver aquilo, adentrou o quarto de Maria, de maneira súbita, e foi falando:

- Maria, Diomédio preparou os cavalos e foi buscar o médico. Na verdade, ele ia à busca de uma enfermeira.

- Vocês acabaram de me matar! Foi o que ela disse. Horas depois passou a dar gritos horríveis, enquanto segurava a própria cabeça. Segundo o relato dos mais velhos, ela não só se contorcia como seu corpo pulava na cama, numa convulsão descontrolada.

Antes disso, Maria havia tomado um chá e se acalmara e entendendo que estava nos seus últimos minutos de vida, mandou que chamassem seus oito filhos e todos os nove, inclusive o bebê, foram colocados ao seu redor, ela olhou cada rosto e meio cansada, abençoou cada um. A seu filho mais velho, que havia chegado antes, pediu:

- Não se separem. Fiquem todos juntos. Diomédio, cuide disso.

Horas depois e enfermeira chegou. Mas era tarde. Maria havia falecido.

Era quase impossível não se separarem. O bebê contava com apenas alguns dias de vida, e o mais novo, depois do recém-nascido, tinha, então, dois anos, era João Alves, meu pai, sendo o mais velho um rapaz de dezesseis anos.

A parteira, muito conhecida e considerada, levou consigo o bebê, que faleceu quinze dias depois.

Doutor Raul, médico obstetra, que assistia as mulheres nos sítios e se tornava compadre de algumas, sabedor da notícia do falecimento de uma de suas pacientes mais conhecidas, “desceu a serra” e veio saber como estava a família. Considerando as mortes de ambos os pais, sugeriu que as três meninas: Luíza, doze anos; Margarida, quatro anos e meio e Raimunda, nove anos, fossem para o orfanato na cidade de Martins. Diomédio se negou a deixar as meninas irem, alegando que o desejo da mãe era vê-los todos juntos. Foi convocado, então, o “conselho” da família, que era sempre composto pelos tios mais velhos. Conseguiram dobrar Diomédio que impôs uma condição: Luíza não iria. Ficaria para ajudar a cuidar das demais crianças.

Foi um ano de seca, aquele, Diomédio não tinha outra saída, junto com o médico levaram as duas meninas mais novas. Margarida de nada se lembra dessa viagem, mas não se esquece de muita coisa vivida naquele orfanato.

No primeiro andar ficava o dormitório das crianças e tinha uma varanda que dava para a rua. As crianças ficavam sob os cuidados de Dona Bárbara, que até era gentil. Todos dormiam em redes, por conta disso, sofriam a terrível tortura imposta pelo enorme frio que fazia naquele pé de serra.

O estudo no orfanato era muito exigido e levado a sério, caso demonstrassem lerdeza de aprendizagem as professoras/freiras davam-lhes determinada quantidade de “bolos”, com palmatória. Castigo igual era aplicado às rebeldes. Enquanto as outras eram castigadas, Margarida tratava de se garantir, por medo antecipado, rezava a todos os santos para que a livrassem, medo do tal castigo se estender a ela.

A madre superiora se chamava Letícia e todos a tratavam por “mãezinha”. O traje das freiras era todo preto e deixava sobressair apenas o rosto. Exceção para a freira mais velha que usava traje marrom, no estilo São Francisco de Assis.

Por ser um período de seca, havia grandes dificuldades. Às vezes o almoço era pirão feito de um ralo caldo de feijão, ou folhas de beldroega, cozidas, que precedia o pirão, como uma espécie de “couvert”.

Margarida e outras crianças não suportavam aquele caldo e retiravam a folhas às escondidas, certificando-se não haver alguém à direita ou à esquerda, jogavam as tais folhas pela janela, que iam cair no pátio. Descobertas, foram alertadas pela Madre:

- Amanhã, se eu encontrar uma folha que seja de beldroega, vão todas apanhar!

Dia seguinte, à hora do “couvert”, as folhas eram engolidas com muitas caretas. E não mais foi visto uma única.

Cinco da manhã algumas crianças mais espertas eram acordadas pelas pisadas das Irmãs, subindo cada degrau e pelo badalar de um sino em suas mãos, para, nas primeiras horas do dia, participarem da missa. Fazia bastante frio e algumas arquitetavam determinada doença, naquele momento, como dor de barriga, para ficarem na cama e eram deixadas lá, porém, se estavam doentes só tinham um remédio: tomar purgante de azeite de mamona, mais conhecido, por aqueles lados, como “óleo de carrapato”. Mais horrível ainda era ter que correr constantemente até a “latrina”, depois. Pensando bem, melhor seria encarar o frio. Deduziam.

Com uma escova na mão e uma pequena lata na outra, as crianças se amontoavam, de cócoras, nos cantos da parede, devido ao intenso frio. Minha tia conta, que apesar da seca, lá fazia muito frio devido a cidade ser encravada no pé das serras. Esse frio matutino metia medo e torturava a carne.

Certo dia, na aula de artesanato, Margarida, indisposta, disse que estava com febre e recolheu-se. Já na cama, cobriu-se toda. Sabia que precisava “esquentar-se”. Minutos depois uma das freiras foi lá e colocou-lhe o termômetro. Que febre que nada! Margarida foi descoberta e obrigada a voltar para a aula. Lembrando, que era apenas uma criança com menos de seis anos.

Seu irmão as visitava duas vezes por ano e levava com ele farinha, rapadura, mel de cana e algumas coisinhas mais, que as meninas pouco viam.

Numa dessas visitas ele levou consigo Luíza, que implorou para ficar naquele lugar. Talvez ali, ela até chegasse a ser mais livre, pois era grande a responsabilidade em casa para alguém que não passava de uma pré-adolescente, o principal é que estaria perto de suas irmãs. Seu irmão não consentiu.

As meninas retornaram. Margarida, com oito anos, Raimunda com quase treze. O irmão Diomédio, agora casado, lutou muito para tê-las de volta. Com muita determinação, queria, agora, fazer o que sua mãe pediu. Após oito idas e vindas ao juizado de menores, conseguiu a liberação das duas.

Em determinada parte do percurso pararam em uma “bodega” para comprar o lanche: um pedaço de queijo e uma rapadura, que comiam caminho afora.

Depois de quatro anos estavam de volta. Margarida na garupa do cavalo, e Luíza, que fora junto, já mocinha, em outro.

Margarida logo se entrosara nas atividades de sua nova casa, entre as tarefas, cuidar dos filhos menores de sua cunhada, que se encontrava com poucos meses de gravidez.

A vinda das meninas foi àquela novidade. Todos da vizinhança, parente ou não, vinham conferir a novidade que eram “as irmãs de Diomédio”.

Diomédio era muito severo com os irmãos e sua mulher em nada contribuía para amenizar os desacertos das crianças. A cunhada, por imaturidade, enredava qualquer que fosse as atitudes delas, tão logo Diomédio adentrava a casa, se estivesse estressado, “com o sangue quente”, ficava mais ainda e acabava por descontar nas crianças que apanhavam muito dele.

Algum tempo depois “o evangelho dos crentes” entrou nas Piranhas, interior do Rio Grande do Norte, onde todos residiam. Os Batistas mais velhos, como Joaquim e Izídio, “mudaram de religião”, aceitaram a Jesus pela pregação do pastor Ramiro, o “Ramirão”, um destemido na pregação do evangelho naquele interior, no início da década de quarenta, sob a coordenação dos pastores João e Pedro Queiroz, da Igreja de Cristo, em Mossoró. Logo a seguir os da segunda geração, como Diomédio, que mudou bastante, mas não deixou de bater nas crianças por completo, como forma de castigo.

Em casa, sob a severidade de Diomédio, Margarida ficava de longe, pois “meninos não pisavam no meio dos adultos”, a não ser quando eram chamados para levar-lhes água.

Numa dessas vezes ouviu Diomédio dizer: “Nossa avó vivia repetindo suas “rezas”, mecanicamente, seguindo orientação do rosário, que nem consta da Bíblia tal instrumento. Mas veja o que Jesus nos diz: “...tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos”.

Ela ficou pensando lá de seu cantinho: “Então, não é preciso todo esse sacrifício?! Eu rezo toda noite o terço, que tem três mistérios e um tantão de “ave-marias”, se eu quiser cumpri-lo terei que rezar... Já que Jesus disse aquilo, tudo o que eu preciso fazer é conversar com Deus... Falar diretamente com Jesus?!”

Largou o rosário e converteu-se naquela noite, guardando isso só para si. Mas sua oração era somente: “Jesus, me ajude, cuide de mim”.

Margarida, na adolescência, passou a morar com Luíza, sua eterna protetora, nas Piranhas, por três anos, e em 1951 eles vieram morar em Mossoró.

Em Mossoró ela fez o curso de corte e costura e com muito sacrifício comprou uma máquina. Ela recebera uns trocados de Diomédio, pois o próprio comprara seu “pedacinho de terra”, herança dos pais, por “três contos e quinhentos”, entretanto a máquina custava “sete contos”. Não importava o quanto ele tinha ganhado, usufruindo da terra, tudo o que lhe dera, não foi suficiente para pagar seu instrumento de trabalho. Apesar de temerosa, ela fez a compra.

Confiante no curso se pôs a costurar roupas. De início pediu às vizinhas que, quando dispusessem de tecidos “fracos”, próprios para roupas de casa, trouxessem até ela, que as costuraria sem nada lhes cobrar, outra vizinha lhe ajudava com os modelos mais complicados, além disso, desmanchava as roupas velhas e se punha a refazer seguindo o corte e o modelo, em busca de experiência, até ter sua própria clientela.

Depois disso conseguiu pagar direitinho toda a máquina e tornou-se uma exímia costureira. Eu mesma presenciei os vários carros parando na frente de sua casa, anos depois, em Petrolina, no bairro “Quilômetro Dois”, trazendo as mais diversas mulheres procurando por seus serviços e que as obrigavam a virar a noite, tão sobrecarregada ficava.

Pedro, um dos irmãos mais novo de Margarida, se juntou a ela em Mossoró e os dois planejaram morar em São Mamede, na Paraíba, Estado vizinho do Rio Grande do Norte, onde morava Braz, outro irmão deles. Resolveram pegar um trem, meio de transporte comum e com preço acessível na época, até a cidade de Souza, na Paraíba. Dormiriam lá.

As estações de trens eram apinhadas de gente, gente que ia; gente que vinha e gente que ficava acenando com a mão em adeus.

Dia seguinte pegaram outro trem e rumaram para a cidade de Patos e de lá pegariam novamente o trem, para São Mamede.

Braz combinou de esperá-los na estação, com uma foto de Pedro em mãos. Nesse tempo os irmãos não possuíam documento algum, com exceção do batistério.

Braz se atrasara, os irmãos desistiram do trem e resolveram pegar um caminhão pau-de-arara, mas deram sorte, passando próximo ao caminhão, Braz vinha em outro e por acaso pousou os olhos em Pedro. Margarida nada disso presenciou, pois estava na cabine. Todavia, Braz, aos gritos, conseguiu alcançar o caminhão. Conversou com os irmãos e, uma vez que eles tinham pagado a passagem, deram prosseguimento.

Margarida ficou assombrada com a pequenez da cidade de São Mamede, à época, e pensou: “Essa cidade é só isso?!” Refletindo, assim, seus olhos percorrem a rua quase toda, em uma volta de quase trezentos e sessenta graus, e por uns segundos se detiveram em um moço que estava na janela, da rua defronte. O rapaz, de estatura média, cabelo militar, tinha belos olhos azuis, tão intensos que ela achou nunca ter visto igual, porém, desdenhou: “Além da cidade ser minúscula, só tem gente sem graça”! Exagero dela, o rapaz era de boa aparência e, o que ela não sabia, era irmão de sua cunhada.

Rapidamente fizeram amizade e ele passou a acompanhá-la nas festividades de fim de ano, vindo logo a falar-lhe namoro, no que foi aceito. Margarida estava enlevada e amou o jovem, João Cassiano, profundamente. Quase um ano depois, em 1958, estavam casados. Tiveram seis filhos: Flávio, Rubem (In memoriam), João Helder, Jomar, Nina e Vandilma.

Na década de sessenta o casal veio morar no Projeto Bebedouro, assim denominado o esquema de irrigação nas áreas áridas do Nordeste, ligado á CODEVASF/Petrolina e outros órgãos federais, onde havia abundante oportunidade de trabalho na área de construção de agrovila, canais, etc. Uma pequena parte disso gerida pela Construtora Cassi, do irmão de João.

Em 1965 foram morar definitivamente em Petrolina.

Margarida ouviu um burburinho lá em baixo, era Raimunda conversando com a senhorinha que se prontificou a abrir o tal “museu”. Só aí despertou do seu devaneio. Retornou à pequena sala, que ficava atrás da varanda, novamente olhou em volta, mentalmente se despediu.

Saiu dali sentindo-se leve. Tudo parecia bem vivo, mas eram apenas lembranças e que elas lá ficassem.

Dentro do carro, de volta à cidade de Petrolina, com a cabeça encostada no vidro lateral do veículo, via a paisagem passar por ela de maneira acelerada, se pôs a pensar naquela que foi sua grande protetora: Luíza, a quem Deus havia recolhido anos atrás.

O câncer

Margarida foi acometida de uma assombrosa enfermidade. Foi um terrível golpe. Durante esse período sentiu-se a mais só das criaturas, não tinha com quem desabafar. Procurou o único aconchego disponível: o dos filhos, embora eles de nada soubessem. Sentiu demais a ausência de seu marido, o homem a quem dedicou toda a sua vida, aquele que era o seu tudo, por quem, segundo ela, havia “negado a Cristo” ao aceitar casar-se por meio de um sacerdote católico, sendo ela evangélica. Lamentava dessa forma dura, consigo mesma.

Algumas décadas depois sua fé seria colocada à prova de maneira sequer imaginada. Margarida não tinha tempo para si mesma e sem perceber descuidou de sua saúde. Depois de meses de certas estranhezas, ela resolveu ir ao médico ginecologista, que solicitou exame ginecológico preventivo.

Com o resultado em mãos ela voltou ao médico e ouviu dele: “A senhora vai precisar fazer um tratamento fora daqui”. Era uma pessoa esperta, não foi difícil deduzir, o que ela vinha temendo, o prognóstico no rodeio do médico e concluiu: “O senhor está dizendo que eu estou com câncer?!” Talvez por ela estar só e considerando que na década de setenta o câncer no útero era visto como uma doença absolutamente mortal, mais ainda em relação aos dias atuais, dado a falta de evolução da ciência nessa área e de suporte no combate; o médico se recusou a confirmar, todavia reforçou a urgente necessidade dela escolher uma capital.

O consultório do médico ficava em um primeiro andar. Margarida desceu para o térreo com as pernas trôpegas. Ninguém fazia ideia do que ela estava sentindo. Faltava-lhe o chão. O coração ficou pequeno e pesado com grande angústia. Para piorar, lembrou-se de duas pessoas conhecidas que morreram dessa incurável doença. “Vou morrer, meu Deus. Vou morrer! E meus filhos? O que será dos meus filhos?!” Pensou.

Sentindo-se arrasada e sem ter com quem desabafar, foi até o quarto, pegou a Bíblia e abriu-a ao acaso. Deparou-se com um texto que ao lê-lo sentiu-se pior ainda. Um calafrio subiu por todo o seu corpo: “Põe em ordem a tua casa, pois morrerás...” Era a história de um rei que adoeceu e o profeta foi levar-lhe uma mensagem fúnebre. Mas o rei argumentou com Deus, lembrando-Lhe de sua dedicação, fidelidade e empenho. Margarida percebeu uma voz quase audível em sua consciência: “E você, o que tem feito?”

Ela se contorceu por dentro. Pensou na crente fraca que se sentia, que sequer ia com frequência aos cultos, isso porque seu marido vinha de uma família extremamente católica, não permitia que ela fosse à igreja evangélica. Mas, depois disso, ela tratou de mudar, passou a buscar a Deus com mais dedicação, inclusive fazendo jejum de vinte e quatro horas, algo impensável, antes. Agora dispunha de uma força que não conhecia.

O marido estava viajando e chegaria dali a poucos dias e ela falaria da necessidade de fazer um tratamento fora, e o fez. Contou-lhe tudo e explicou porque escolhera a cidade de Fortaleza, sua irmã, Luíza, morava lá. A reação dele? Nenhuma. Nenhum apoio, palavra, questionamento. Mais tarde, de forma robótica, ele proveria os meios financeiros para sua viagem. Nada mais. O que mais lhe doía nessa reação é que não foi motivada pelo choque. Ele era assim sempre.

Chegou o dia da viagem a Fortaleza. Margarida estava apreensiva. Tinha o apoio da mulher do pastor, de sua primeira igreja, Batista; de uma empregada chamada Edelzuíta, que era de total confiança e dedicação extremada, e ainda contava com a amizade sincera e fiel de uma senhora por nome de Esmeralda, que provava isso na prática, estando lado a lado no período de sua dor, amizade essa que se estenderia por quase quarenta anos. Aquele tipo raro, de todas as horas, desde apoio emocional ao auxilio de afazeres domésticos. Seus filhos estavam em boas companhias, contudo, “mãe é mãe”, como se dizem. Nunca age diferente do que se espera de uma mãe amorosa. Margarida só pensava neles: “Meu Deus, meus seis filhos...” Repetia constantemente.

Despediu-se dos filhos e não chorava, conta ela, praticamente urrava, vindo em sua mente uma cena da infância: uma vaca, desesperada, como se tivesse sentimentos, por terem lhe tirado o bezerrinho. Foi assim que ela se sentiu.

No ônibus todos se inquietaram com aquele pranto. Tentavam consolá-la e queriam saber o motivo: “É que vou fazer um tratamento e nunca me separei de meus filhos...” Justificou.

Quando conseguiu consolar-se observou que todos dormiam. Ela não fechou os olhos a viagem inteira e mal se alimentava. Sabia que seu corpo responderia com mais magreza. Havia perdido mais de quatro quilos, não por causa do câncer em si, mas pela fragilidade emocional e psicológica. Repentinamente lembrou-se que estava viajando de ônibus pela primeira vez, pois, sempre que passava por ela esse tipo de veículo sentia enorme desejo de viajar nele, achava que deveria ser muito bom. Agora que se encontrava dentro daquele transporte não tinha condição emocional de tirar proveito e pensou: “Como o destino podia ser tão cruel?! Que forma horrível de me presentear!”

Tão logo chegou à cidade de Fortaleza começou sua “via crucis”. Tudo era distante e burocrático. Mas seu “anjo da guarda” estava a postos. Assim era sua irmã Luíza, mulher audaciosa e desembaraçada. Para Luíza não havia barreira que uma “boa boca” não a colocasse por terra. Quando morava em Mossoró, Luíza era requisitada para acompanhar algum paciente nas peregrinações hospitalares, ou recebê-lo em sua casa, com doença tratável ou não. Era de sua natureza ser caridosa.

Após os exames de praxe e acompanhamento com a assistência social do hospital do câncer, Margarida passou a ouvir o termo “câncer no útero”, abertamente. Deu início, então, a um doloroso tratamento que incluía radioterapia e que deixava a maioria das mulheres, ali, cambaleantes, de tão abatidas. Muitas delas morriam nessa fase.

Passada a primeira etapa o médico comunicou que seria preciso operá-la e retirar o útero. Ela submeteu-se à cirurgia e foi vitoriosa. Depois de concluído todo o tratamento, Margarida voltava ao hospital, a princípio de seis em seis meses, a seguir de ano em ano. Cinco anos depois do início do tratamento, o médico decretou: “Você está curada!”

Laura Batista, minha mãe, recolhida pelo Senhor, tinha a cunhada Margarida em alta estima, considerava-a como uma das melhores. Foi Margarida que acolheu meu pai, quando ele chegou a Petrolina pela primeira vez, décadas atrás. Também recebeu Laura, quando ela chegou com a filharada, um ano depois de João.

Laura e João moravam no interior de Goiânia, quando Laura foi surpreendida pela entrada abrupta de Pedro, seu estimado cunhado, que trazia na mão uma carta de Margarida comunicando a respeito do câncer. Talvez, por não saber lidar com as emoções, Pedro protagonizou, mais uma “das suas”, muito conhecidas da família, que nesse caso nada tinha de engraçado. Meio desnorteado, enquanto entregava a carta, tascou:

- Laura, Margarida está com câncer e acho que Maria (sua esposa) também está, pois quando ela “mija no pinico”, sobe um terrível mau cheiro. E saiu da casa.

Minha mãe ficou estupefata! Leu a carta e escorada na parede do cômodo, girou o corpo e encostou a face na mesma. Orou e chorou. Esse gesto a fez lembrar-se da história bíblica de um rei que estava para morrer, mas Deus havia mudado o quadro, acrescentando-lhe mais quinze anos de vida. Ela fez um voto: se Deus desse mais anos de vida à sua cunhada, como deu ao rei, ela daria um culto de gratidão e leria o texto que conta a história desse rei chamado Ezequias. Não sabia ela que Deus havia dado o mesmo texto a Margarida, embora a interpretação tenha sido outra.

Passado algumas horas, agora com os ânimos refeitos, na hora do almoço, ao conversar sobre a atitude de Pedro, ele e Laura se puseram a gargalhar, tanto, que chegaram às lágrimas. Sob o efeito de forte emoção, Pedro deduziu mal e supôs que o cheiro desagradável se dava por causa de uma possível doença, em Maria, na verdade era apenas o odor forte e característico da urina.

O casamento 

Nem sabia por que, mas Margarida sentia muito a falta de seu marido, uma vez que ele viajava constantemente. Passava meses fora de casa. Pura carência, supunha, haja vista ele não suprir suas necessidades afetivas.

Rodeada pelos filhos, pensou nos primeiros anos de casada. Sentia-se enlevada toda vez que olhava para aquele homem. A figura dele representava a realização de grandes sonhos: ter sua própria família, seu lar, seu rumo; ela que vinha de uma família desestruturada por conta da morte dos pais. Seu amor era tão obcecado, pois o amava profundamente, que antes de se recolher para dormir, ia até ele, e o observava atenta, para ter certeza de que ele estava respirando, morria de medo de perdê-lo. “Meu Deus, agora eu tenho um lar, um dono...” Dizia para si mesma logo que casou.

A mudança de temperamento de João Cassiano assombrava Margarida. Como ele havia mudado! Quase nada sobrou daquele homem que ela havia conhecido no passado: atencioso e razoavelmente comunicativo. Em pouco tempo de casado a transformação se dera. Fora de casa era gentil, falante, dado com as pessoas. Ao chegar a casa, porém, uma cortina descia sobre ele. Ficava impenetrável.

As crianças eram tolhidas em suas energias. Em nome de uma submissão exagerada Margarida abafava a vitalidade de seus filhos. Bastava o pai colocar os pés em casa para que o silêncio reinasse, obrigando-os a falar em meia voz. Não havia diálogo algum, ele entrava calado e saía mudo. Quando Margarida resolvia relatar-lhe algo, depois de vencer o receio, descobria-se falando sozinha defronte a uma quase estátua. Quando ele decidia responder, era monossilábico.

Durante muitos anos engoliu a indiferença de seu marido e as muitas informações que chegavam sobre os namoricos dele. Quando ela tinha oportunidade, que era rara, e tocava no assunto, era combatida com veemência. Ele colocava toda a culpa nos fofoqueiros de plantão e na mente fantasiosa dela. Eles não tinham vida em comum, apenas conviviam, e ele, em sua mudez, nada falava.

Dois, três, meses fora do lar parecia pouco ao seu marido. Quando ele retornava passava menos tempo ainda. Saía logo depois da janta e só voltava de madrugada. Ela pediu-lhe uma explicação, o silêncio dele, estampado na face carrancuda, nada dizia. Ela, então, partiu para uma abordagem mais direta e quis saber se ele tinha outra. Implorou que ele dissesse a verdade, fosse qual fosse. Exasperado ele negou e a chamou de mentirosa, pela milésima vez. Mas ela estava determinada a descobrir a verdade e só tinha um jeito: orar. Passou a pedir a Deus, constantemente, para que o que estava em oculto viesse a ser descoberto. Até que um dia Deus lhe respondeu.

Sua sobrinha, Judite, que morava no Projeto Bebedouro, certa tarde surpreendeu sua tia. Parecia muito apressada e inquieta, fazia rodeios e com uma conversa meio desconexa.

Depois de um tempo ela declarou, e de súbito, disse a que veio: “Tia, seu marido tem outra. Fiquei sabendo de tudo. Aqui está o endereço da tal”. Saiu tão rápido quanto entrou. Talvez não quisesse presenciar a reação daquela que foi praticamente sua mãe adotiva. Na verdade, quem descobriu a vida dupla de João Cassiano, foi a vizinha, que, para não se comprometer, entregou o endereço a Judite.

Pasmada e atônita, Margarida segurava aquele pedaço de papel entre os dedos. Ela tinha certeza que ele tinha outra; mas agora custava acreditar. Não tardou a demonstrar seu espanto: “Deus, eu pedi e o Senhor respondeu mesmo! Não precisei correr atrás, bancar a detetive...”

Muitas coisas inquietavam-na aquela noite. Todas as esperanças de que ela estivesse errada caíram por terra. Agora não lhe restava mais nenhuma ilusão. Talvez fosse melhor não estar viva para constatar essa realidade. Mas lembrou-se dos filhos, eles eram sua força.

Margarida planejou armar o flagrante. Foi ao endereço, observou tudo de longe. A pequena casa, o carro dele estacionado em frente. Esperou o momento. Era preciso uma oportunidade. A porta estava aberta e num impulso ela entrou. Ele estava deitado ao lado dela, na poltrona, e pôde perceber, segundos antes, que conversavam amigavelmente. “E agora? A mentirosa esta vendo com seus próprios olhos”! Falou.

João e a mulher arregalaram os olhos. A tal mulher apavorou-se. Margarida tratou de acalmá-la: “Fique assim não, “dona”. Você sabe que em casa ele não dá uma palavra com ninguém? Nem com os filhos! E quando eu quis saber se ele tinha outra, veja bem: só saber. Ele me chamou de “crente falsa”. Pois é, sou crente - falando em tom moderado -, quero confusão não. Vim somente para tirar a “prova dos nove”. Fique com ele!” Dito isso, deu-lhe as costas e se foi.

Algo ficou martelando-lhe a mente. Tinha certeza que conhecia aquela mulher de algum lugar, mas de onde? Ou estaria enganada? Puxou pela memória e chocada lembrou: ela se chamava Lourdes e havia trabalhado uns dias em sua casa, levada pelo próprio João Cassiano.

Margarida tinha a expectativa de que seu marido se arrependesse e por consideração à família fizesse uma nova tentativa de salvar o casamento. Mas nada disso se deu. Novamente o silêncio era a resposta dele. Até que ela não suportando mais se dirigiu a ele e determinou: “Ou sai eu ou você dessa casa!”

Ele saiu. A separação ocorreu em 1979. Ficou acertado que ele moraria em uma casinha de três cômodos que eles tinham em um bairro próximo. Saiu apenas com a mala na mão. Margarida, penalizada, resolveu dar uma ajudazinha, enquanto ele viajava. Colocou em ordem toda a sua roupa, levou-lhe algumas coisas: cadeira, fogão de duas bocas, filtro, algumas panelas. Ficou toda satisfeita com seu generoso gesto.

João voltou de viagem e vendo as coisas bem arrumadas entendeu tudo errado. Sentiu-se humilhado e disse-lhe cobras e lagartos.

Algum tempo depois João ponderou e quis voltar, mas Margarida estava irredutível e ambos trataram de dar procedimento às suas vidas.

Tempos depois João assumiu por completo sua amante, levando-a para morar com ele. Margarida resolveu ir para Fortaleza, onde comprou a casa que pertencera a Luíza. Alguns anos depois, voltou a morar em Petrolina novamente.

Era inevitável que Margarida mantivesse contato, de alguma forma, com Lourdes, mulher atual de João, agora seu ex-marido, uma vez que seus filhos costumavam se reunir em visita ao pai e, claro, levavam a mãe junto. Aos poucos houve certa reaproximação entre ambas, mas Lourdes nunca relaxou, totalmente, e tratava Margarida com bastante reserva.

Margarida fora uma “lady” civilizada. Uma mulher que, apesar de seu pequeno mundo, soube perdoar, superar e sabia, acima de tudo, separar as coisas. O tempo a moldou.

“Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera”, informa parte de um poema. João Cassiano se modificou bastante. Em alguns a velhice é uma bênção, torna-os mais flexíveis. João agora era até meio sensível, atencioso e apegado aos netos, demonstrava isso quando recebia a todos.

Margarida continuava a solidária de sempre e o ajudava no que podia, até mesmo andando bastante atrás da aposentadoria dele e a conseguiu depois de muita batalha burocrática, haja vista não constar, da Previdência, parte de suas contribuições.

Margarida estava em sua residência quando recebeu a notícia de que Lourdes estava muito mal. Um AVC a levou ao internamento hospitalar. Não demorou muito para chegar a notícia de que Lourdes não resistira. Margarida ficou espantada. Nunca passou pela sua cabeça a morte dessa mulher, mais nova do que ela.

Margarida foi para o velório, em casa de João, no Projeto de Irrigação, NH-4, Petrolina. Aproximou-se do caixão, onde Lourdes estava estendida, vestida em uma bata azul-claro de cetim barato. Não havia nela uma flor, sequer.

Quando em vida Lourdes gostava muito de plantas e cultivava alguns pés de flores, bem simples, em sua casa. Margarida foi ao pequeno jardim, colheu algumas e se pôs a enfeitá-la. Nesse mesmo instante lembrou-se de algo que João dissera a sua amiga Esmeralda: “Tomara que nada de grave aconteça, mas se Margarida morrer dessa doença, vou dar a ela um bonito enterro”.

Ali estava ela, diante da mulher inerte que tanto a afetou no passado, a ela e a seus filhos. Mas não a considerava totalmente culpada, seu marido era meio mulherengo. De qualquer forma havia perdoado a ambos. Ela, que com ajuda de Deus, venceu a morte. Quando mais jovem, superou a dor de ver seu marido levado por outra. Ela, que criou seis filhos praticamente sozinha e teve o prazer de vê-los formados e trilhando bons cargos na área profissional. Ela, colocando flores sobre o corpo daquela que, quem sabe, anos atrás, tinha por certo a sua morte, dada a fragilidade de sua saúde.

Passado algum tempo os filhos perceberam que não havia condições de João Cassiano morar sozinho, embora tivesse havido a tentativa. Flávio, seu filho mais velho, o levou para morar consigo em Petrolina.

Margarida foi levada por sua filha Nina para morar em Fortaleza, Ceará.

Em setembro de 2017 a família “Diniz”, por parte de pai, e “Alves/Batista” por parte de Margarida, passou por grande abalo. Rubem Diniz, o segundo filho de Margarida, sofreu um AVC hemorrágico, em Angola, país africano, onde trabalhava.

Mônica, esposa de Rubem e nora de Margarida, portanto, conta que ele passou mal em um dia de sexta-feira, devido pressão arterial elevada. Foi medicado, passou o dia no hospital. No sábado acordou sentindo-se com enjoo e muito sonolento.

Como de costume, Mônica falava com ele pelo celular todos os dias, nesse sábado, em especial, ela não obtinha resposta por parte dele, o que a deixou muito preocupada. Ela, então, passou a ligar para alguns departamentos da empresa e também ligou para a igreja evangélica, a qual ele fazia parte. Ao restabelecer contato Rubem contou como se sentia, depois de Mônica repreendê-lo, ele justificou-se. Havia acordado cedo, fez caminhada na praia e a seguir foi a uma igreja carente, levar cestas básicas para a obra social, a qual estava empenhado, conforme responsabilidade do cargo eclesiástico.

Comunicou, ainda, que iria jogar bola, para se exercitar, com os colegas. Mônica insistiu para que ele não fosse, pois, como se fosse prenúncio de algo ruim, ela começou a sentir angústia. Ele não acatou o conselho da esposa. Cinco minutos de jogo e ele passou mal. Foi levado ao hospital, porém, não resistiu.

Foi um momento muito duro para a nora de Margarida. Após receber a notícia ela pensou no fato de que apenas duas horas antes estava falando com ele. Mais duro ainda foi enfrentar a burocracia do traslado do corpo para o Brasil, que durou quatorze dias. Ele foi enterrado em Fortaleza. Sua morte causou grande abalo á família.

Margarida padece de Alzheimer e não tem noção do que ocorrera, perguntando vez em quando, na ocasião do velório do filho: “Quem morreu?” Os filhos respondiam que foi um amigo deles, que ela não conhecia. O médico determinou que não lhe contassem a verdade.

Ela não tem nenhuma consciência do que aconteceu.

Rubem era evangélico, foi membro da Primeira Igreja Batista em Petrolina. Muito conhecedor da Palavra de Deus, era sempre convidado para pregar. Em casa de meu pai, no Lote do Projeto Maniçoba, ele era recebido todos os anos. Era meio sisudo, mas gostava muito de meu pai, seu tio João Alves, o qual visitava. Nessas vindas sempre assumindo a churrasqueira. Certa vez preparou um jantar maravilhoso para toda a família. Era inteligente e profissional competente.

“Pode alguma coisa boa sair de lá?” Quis saber Natanael. Lá, segundo o relato bíblico, era a cidade de Nazaré, de onde saiu o ser mais precioso que a terra já conheceu. Coisa impossível aos olhos do futuro discípulo.

Pode alguma coisa boa sair do deserto? Parafraseio. Uma região que por sua aridez e excessivo calor não é favorável ao desenvolvimento da vida? Só sobrevivem no deserto as plantas xerófilas, suculentas, com elevada capacidade de adaptação, e animais capazes de armazenar certa quantidade de água em si mesmos.

Do deserto da vida saiu “Margaridinha”. Mulher forte, destemida, batalhadora. Mulher de oração. A primeira a chegar, muitas vezes, no portão da igreja às cinco horas da manhã para o culto matutino. Certa vez fora para um desses cultos em uma congregação um pouco distante, a pé, e quando prosseguia, atravessando um descampado, um pouco antes das cinco horas da manhã se deparou com dois supostos marginais que se aproximaram e um disse: “Olha só quem encontramos...”. Ela os olhou e rebateu: “Meu filho, O SANGUE DE JESUS TEM PODER”! O rapaz interrogou espantado, repetindo umas duas vezes, enquanto se afastava: “Como é Dona?! O Sangue de Jesus tem poder?! O Sangue de Jesus tem poder”?! Os dois se foram.

Jesus é a água da vida. Entrou e saiu do deserto vitorioso para que cada um de nós também o seja, para que sobrevivêssemos.

E Margarida, como toda boa “margaridinha”, bebeu dessa água e nisso reside toda sua capacidade de superação na aridez da vida.

Mal inicia a primavera, a flor margarida começa a florescer e assim permanece até o fim do verão. Margarida dá prosseguimento a sua jornada, convicta de que ainda não terminou o verão.

Caso alguém se estenda um pouco mais em uma pesquisa sobre flores, conhecerá, também, a “flor do deserto”, saberá que é uma belíssima espécie, de rara beleza. Fascinante, de cores variadas e atrativas, de difícil cultivo, mas apreciada, inclusive, por colecionadores. Todos se espantam sem poder compreender, como no deserto pode brotar tal maravilha.

Em meio a aridez da vida podemos e conseguimos produzir frutos e flores.

Margarida faleceu em dezembro de 2020, aos 84 anos. Poucos foram os seus cabelos brancos, para lamento meu não herdei tal particularidade. 

 

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