Vencedor
Uma pessoa inteiramente saudável, graças a Deus, é meu pai, em seus 80 anos, completados, agora, em fevereiro de 2018.
Ultimamente nós estávamos tendo a oportunidade de conhecer uns primos que moram perto de Mossoró. Eu nunca os tinha visto, são os filhos de Dacira. Dentre eles Daniel, que aniversaria no mesmo dia que meu pai, inclusive já tinham feito uma comemoração em Petrolina (2016), quando viajaram quase 800 quilômetros para passar apenas um final de semana, aqui, no interior da Bahia. Foi muito bom.
Daniel insistiu para que meu pai fosse comemorar com o mesmo em fevereiro de 2017. Era a vez de ele passar o aniversário lá e rever a pequena chácara da família. Assim foi feito, e eu participei dessa viagem.
Foi maravilhoso, tinha diversos familiares, foi àquela alegria. Só não foi melhor por que o esposo de Dacira estava acamado com problemas sérios nos joelhos. Nada tão grave, mas que lhes causavam fortíssimas dores.
Seu “Né” era o apelido dele. Animado, falante, relembrando os tempos de quando era solteiro, a forma como aceitou Jesus, de como se tornou evangélico. Estava bem contente com a presença de João, tio de Dacira, e das filhas deste: eu, Auzinetti, e minha irmã Neide, em sua residência.
Na volta, enquanto dirigia seu carro próprio, presente de Deus e fruto de seu empenho (só por isso faço menção, é como falar de um tesouro, ofertado por Deus para um semi analfabeto, que morou em casa de taipa à luz de lampião), no trajeto da velha estrada, meu pai apontava alguns casarões de paredes encardidas e ia dizendo: “Aqui morou fulano de tal. Andei muito nessas estradas... Debaixo de muito sol quente. Às vezes com uma enxada no ombro. A pé... De bicicleta... Conheço cada palmo dessa terra”. Eu ia saboreando suas reminiscências, ao mesmo tempo pensando na história de sua vida.
Tudo começou após a morte de seus pais biológicos: Manoel Ernesto e Maria Batista, irmã de Joaquim Batista.
Logo cedo João Alves descobriu as agruras da orfandade. Primeiro faleceu seu pai. Três meses depois foi a infeliz vez de sua mãe. Sobrinho dos Batistas, tinha dois anos quando foi para a casa de seu tio Cícero Ernesto, irmão de seu pai, mais conhecido como “tio Ciço”, que o adotou. Ficando em família deste de 1940 até 1956.
Ele fora criado com muito cuidado, com muito esmero, apesar de o tio ser um tanto esquentado no temperamento, às vêzes agressivo. Mas nada que chegasse às vias de fato. Havia inclusive uma prima/irmã que caiu de amores por aquela criança, e dele cuidava muito bem.
Minha tia Tereza surpreendeu várias vezes, Luzia, era como ela se chamava, mantendo meu pai escarranchado em seu quadril enquanto seguia para algum lugar.
A criação de meu pai foi bem diferente de seus irmãos que sofriam com o temperamento explosivo de seu irmão mais velho, Diomédio.
Certa vez correu um boato, sem comprovação alguma, que João havia proferido xingamento para com a esposa de Diomédio, Dona Alaíde. Seu Sebastião, pai da esposa de seu irmão, apareceu logo cedo com uma corda. Vinha para bater em João. Ele estava com seu pai adotivo ordenhando uma vaca, no exato momento em que o pai segurava o balde com leite e João, seu sobrinho, segurava o bezerro.
Seu Sebastião contou tudo e logo foi em direção a meu pai. Muito rapidamente meu tio avô tomou a frente. Meu avô era de estatura média, enquanto seu Sebastião era homem alto e forte. Mas meu avô, confiando que meu pai não era dado a esse tipo de comportamento, não se deixou intimidar: “Vocês não vão fazer com esse aqui o que vocês fazem com os outros! Pensa que eu não sei que vocês os tratam feito animais?! Fora daqui! Saia de minha propriedade!”.
Assim, meu pequeno grande avô o fez sair de lá. Seu Sebastião não esperava tal reação. O velho Sebastião murchou a valentia e se foi.
O tio Cícero tinha três filhos: dois homens, já rapazes, e Luzia, adolescente, quase moça.
Os irmãos adotivos de João foram se casando, e aí achegou a vez da amiga/irmã de meu pai, Luzia. Ela casou-se e foi morar na fazenda Lagoa da Pedra, apenas alguns quilômetros das Piranhas onde morava. Ficou fazendo parte da família, dentro da mesma casa, João, o pai e a mãe.
Algum tempo depois, lamentavelmente, Luzia, que teve um filho, faleceu do segundo parto.
Novamente o tempo passou e quando João tinha por volta de dezenove anos faleceu sua mãe adotiva. Para ele fora um duro golpe. Ele sentia como se estivesse perdendo a família por duas vezes seguidas.
Dado comportamento de João para com seus filhos, eu achava que ele fora afetado, de certa forma, achava que poderia haver um vazio dentro de si, pois não conhecera seus pais biológicos, mesmo sendo tratado como filho por seus tios. Isso não proporcionara preenchimento total, afinal, até seus irmãos de sangue meio que vagueavam, tomando conta de suas vidas. Ele chegou a passar dez anos sem ver um deles.
Restou apenas João e tio “Ciço”. Por um tempo os dois homens permaneceram sozinhos tocando suas vidas. Os filhos mais velhos de seu pai nada fizeram para que algum amparo fosse dado a esses dois homens. Mas um grande amigo, fazendeiro, por nome de Joca Holanda, comovido com a situação, os convidou para morarem com ele. Aceitaram.
Cícero e seu filho, João, ficaram lá por um bom tempo. Até que surgiu o convite, de uma bondosa senhora, de nome Ana Regalado, que era sua madrinha, para morar com ela. João aceitou e teve a oportunidade de ter uma segunda mãe. Considerou que seria melhor ele ir morar com Dona Ana, pois diminuiria o peso de Joca Holanda, embora este tenha aceitado a contra gosto a saída de João. Assim, pai e filho foram separados, mas como tudo ficava meio perto, meu pai sempre o visitava. Se a esposa de seu tio “Ciço” o tratava bem, Dona Ana superava em atenção aquele rapaz órfão, seu querido afilhado. Sua madrinha tinha carinho em dobro.
Toda noite, antes de meu pai dormir, ele já encontrava a rede armada, e um penico debaixo da mesma, era o costume (por isso falarei desse instrumento em algumas das histórias de minha família. Era o complemento de “suíte” da época. Eu mesma alcancei tal costume. Tenho tios que ainda hoje fazem uso desse apetrecho, pois não dispõem de banheiro no quarto e o toalete social não fica tão próximo), isso para meu pai não tomar o “ofensivo” vento da madrugada, que poderia causar-lhe mal. Muitas vezes o penico era de alumínio, tão bem areado que brilhava.
João Alves era um camaleão, aprendeu.Tinha como vantagem saber adaptar-se em um meio social quase estranho, com uma família que não era a sua e nem seus parentes.
Logo de madrugada levantava-se, por volta de quatro horas e meia, ia buscar água nos poços. Enchia os potes, que eram seis, imensos jarrões de barro, enchia também as calhas, os filtros e juntava lenha para a queima do dia.
A casa era bem grande e Dona Ana gastava muita água.
Quando o sol saia e todos eram convidados para o café, João Alves já tinha cumprido suas primeiras tarefas do dia, sem que ninguém o pedisse. E assim foi, diariamente, enquanto morou lá.
O senhor Joca Holanda costumava dizer:
- Nunca me levantei para achar João dormindo. Um “cabra” novo desse tipo, com essas qualidades, é difícil achar.
Nessa hora, ao narrar esses fatos, ele se emociona. A voz embarga. Eu aticei mais ainda esse sentimento e falei o que era verdade: “Sempre foi um grande trabalhador, disposto, corajoso, ativo”. Nesse momento ele perde a fala, enxuga os olhos sem querer que as lágrimas desçam. Mas não tem jeito e com dificuldade de se expressar falou:
- Sabe por que eu fazia isso? Para poder manter dois armadores garantidos na parede daquela casa. Tratava-se de segurança, amparo. Ele completou: Para que eu pudesse armar minha rede todas as noites com tranquilidade. Era uma visão rústica, porém, real.
Estava com 79 anos, quando me contou sua história, cheio de vigor, apesar da ponte de safena. Continua madrugador e muito trabalhador. Nenhum de seus filhos herdou, de forma abrangente, tal coragem e disposição para enfrentar o que viesse pela frente, embora sejamos batalhadores. Até minha mãe reconhecia isso. Apreciador de uma boa prosa e piadista. Do tipo que mantém pessoas em volta. Sempre com mil histórias para contar.
Do sertão ouvimos muitas histórias inconcebíveis, que nos contava por pura provocação, como uma sobre a tal “cobra leiteira”. Certa vez ele contou que quando as mulheres estavam de resguardo, havia ganhado bebê, tinham muito medo da “cobra leiteira”. Ela subia na cama, quando a mãe sonolenta amamentava seu filho, forçava a retirada do bebê do peito da mãe, colocava a cauda na boca da criança, enquanto roubava o leite materno. Essa era demais. Meu pai até afirmou que "fulano de tal" chegou a matar uma cobra dessas já em cima da cama. Nós dizíamos:
- Fala sério! Era apenas uma cobra qualquer, julgada dessa forma por causa da lenda. Caíamos na gaiatice e fazíamos algazarra disso.
Outra hora quando alguém contava algo grandioso sobre algum animal, ele tinha a mania de tentar superar:
- Por isso não. "Cicrano de tal" matou uma cobra de dez metros de cumprimento. A gente dizia: tudo isso?! Desse tamanho?! Ele respondia:
- Pois é... E apenas de um olho a outro.
Lá nas Piranhas, após o desejum, os homens seguiam para a roça, as mulheres cuidavam das tarefas do lar e quando era preciso iam para a roça participar da colheita também.
Em meio a tudo isso meu pai foi juntando uns “tostãozinhos”.
Apesar da luta ele disse ter sido feliz naquele tempo. Foi respeitado, muito bem zelado e considerado. Nada lhe faltava.
Para ele é possível que Dona Ana fizesse mais do que sua mãe. Naquele tempo, muito mais do que nos dias de hoje, afilhado era filho. Ele só saiu de lá em 1960 para casar-se.
João e Laura, primos, conheciam-se desde criança naquelas redondezas. Sempre que tinha oportunidade o mundaréu de primos brincava juntos. Divertiam-se indo aos famosos banhos nos baixios, quando a água era farta naquele tempo. Chegou a adolescência, e com ela a troca de olhares, as brincadeiras insinuantes. Até que João falou namoro a Laura e foi aceito.
Tempos depois pediu a mão dela ao seu tio Joaquim. Meu avô falou:
- Laura não está preparada para casar. Ela não foi treinada, sendo caçula, para assumir a casa. Não é muito capacitada.
João sequer ouviu e assim casaram-se. Residiam nas Piranhas.
As vêzes as dificuldades nas Piranhas, onde moravam, eram imensas, e o serviço que havia era apenas arrancar tôco, resto de árvore enterrada em solo duro, com picareta. O pagamento era feito por meio de uma irrisória diária trabalhista. Havia homens, inclusive da família, que se recusavam a ir e preferiam comer seu escuro feijão-de-corda, à água e sal, misturado com farinha e rapadura.
Para manter a carne da semana meu pai caçava, era exímio atirador, naqueles tempos não havia proibição para esse meio de sobrevivência, ora minha mãe matava uma galinha das poucas que costumava criar.
A mobília da casa era simplíssima. Meus pais não fugiam à regra, do costume geral, não havia diferença: cada um trazia sua rede e seu lençol, depois, com as melhorias iam comprando mais, principalmente para os filhos que iam nascendo, que começavam com “redinhas”. Havia uma mesa, uns tamboretes, com o acento feito de couro de bode, curtido e esticadíssimo. Uma simplória cristaleira, geralmente comprada na feira, para a louça.
Algumas vezes moramos em casa de taipa.
Em 1962, já com dois filhos, João resolveu ir para Mossoró com a família em busca de melhoria, embora, sabendo ele que a cidade lhe traria muitas dificuldades, uma vez que sua profissão era mais a agricultura, não obstante fazia também serviços de pedreiro.
Tomaram um trem em Almino Afonso. Esse meio de transporte era dividido em duas classes: primeira e segunda. A primeira tinha poltronas estofadas, e parece-me com acesso a uma pequena cozinha, chamada restaurante. A segunda tinha acentos duros de madeira em tabuinhas finas, envernizado.
Nesse trem, em época de política era muito mais divertida a viagem. Havia grupos que defendia determinado candidato, com bandeirolas e cantorias entre os vagões lotados.
Em Mossoró João foi trabalhar em um armazém de sal. O trabalho era descarregar o caminhão. Serviço extremamente pesado. Alguns homens ficavam em cima do veículo e colocava o saco de sal com 60 Kg na cabeça do outro. Meu pai era de estatura mediana e todos concluiam que ele não durava muito naquele trabalho. Enganaram-se. Ele só saiu quando ouviu boas notícias de seu sertão.
Em Mossoró ficou até 1964.
Quando começou ouvir que estava havendo inverno, e dos bons, nas Piranhas, ele juntou a família e voltou para sua terrinha, o bichinho da agricultura fazia rebuliço em si. Ele desejava ardentemente plantar. Era um caso de amor com a terra e com a chuva. Os frutos eram as bênçãos de Deus recompensando essa paixão.
Foi um ano bom, de muita fartura. Ele teve uma ótima colheita. Isso o deixava em êxtase.
Logo que se acomodou, no lar das Piranhas, João foi buscar seu pai adotivo, o tio “Ciço”. Não me lembro das feições dele. Mas lembro de sua rede eternamente armada, noite e dia no meio de nossa sala, de seu andar com bengala, de seus óculos de grau de metal dourado e de que, vergonhosamente, eu, apenas uma guria, era muito encrenqueira com ele, na ausência de minha mãe.
Emociona-me pensar nisso. Pedi muito perdão a Deus. Minha mãe disse que ele nunca contou nada e quando eu fazia alguma traquinagem digna de uns surrões ele pedia que ela não me batesse. “Perdão Deus, perdão vovô”. Penso.
Meu pai demonstra muita gratidão pelo gesto desse tio/pai, que o acolheu e o amou. Os dois filhos legítimos de meu avô, que moravam uns cinquenta quilômetros de distância, em cidadelas circunvizinhas, não apareciam. Apenas um veio vê-lo uma vez ou duas. Nada trazia para ajudar, não sei se tinham consciência do que eram as dificuldades naquele interior. Depois meu pai perdeu contato.
Meu avô foi mais cuidado de perto por minha mãe. Ele ficou conosco até o dia de seu falecimento que ocorreu em setembro de 1966, quando eu tinha apenas cinco anos e com essa idade fui incumbida de descer até o engenho, onde ocorria a moagem, ou seja, a fabricação de mel de cana e rapaduras, e dar a notícia a seu filho João.
Alguns irmãos mais velhos de meu pai já o apontaram dizendo: “Esse aqui, foi o que menos sofreu”. Mas houve algumas ações no comportamento de meu pai, que o fazia parecer um pássaro fora do ninho. Muitas vezes o ouvimos chamar seu pai adotivo de “o véio Ciço”. No fundo ele sentia-se envergonhado por ser adotado, por chamar alguém de “pai” que não era seu pai. Certa vez eu lhe perguntei se em algum momento ele pensava nisso, se isso o afetou, ele negou completamente. Mas considero que algo ficou em seu subconsciente por causa de um agravante: meu pai perdera duas famílias.
Em 1969 João pensou em ir para São Paulo. Antes decidiu que daria uma parada em uma cidade do Pernambuco, pois fazia dez anos que não via seu irmão Braz que morava na tal cidade chamada Petrolina.
Chegando lá Braz o fez mudar de ideia completamente. “Que São Paulo, que nada! Quem está indo tem voltado de mãos vazias”.
Braz falou-lhe de um grande empreendimento que estava para se iniciar, para sair do papel, um projeto do governo. Era o Projeto de Irrigação “Bebedouro” que, através de canais, distribuiria água, vinda do rio São Francisco, para irrigar as plantações dos colonos que passariam a viver da agricultura cultivando hectares de terras sorteadas pelo Governo Federal, porém, anos depois, o colono pagaria em pequenas prestações o seu lote. Inclusive, muitos pobres, dos que souberam administrar seus ganhos, mudaram completamente de vida. Nasceria aí a “Califórnia brasileira”.
Por um pequeno período ele ficou trabalhando em Petrolina, como pedreiro. Era uma pessoa inteligente, versátil, em sua rudeza profissional. Trabalhava na agricultura, com carpintaria e mais tarde mecânica. Se tivesse tido a oportunidade de estudar e fazer uma faculdade, poderia ter sido um excelente engenheiro civil, ou um dedicado agrônomo.
Pouco tempo depois passou a trabalhar no Projeto Bebedouro. Lá havia todo tipo de trabalho e em abundância: motorista, caçambeiro, tratorista, engenheiro, mestre de obra, pedreiro, etc. E oportunidade para pessoas que abriram micro empreendimentos, como pequenos restaurantes, etc.
João, a princípio, foi trabalhar como pedreiro, na construção de grandes canais, no modelo trapezoidal, que distribuíam água para pequenos canais que circundavam a área a ser plantada, estes, em forma de “u”.
Depois foi convidado para construir as agrovilas, escolas e igrejas, deixando-as prontas para serem habitadas. Começando como pedreiro e concluindo como carpinteiro. Era um exímio carpinteiro, no que diz respeito à construção das tais “tesouras”, um método da carpintaria que sustenta grandes telhados, chegando ele a discutir com um engenheiro novato, ao afirmar que tal método, proposto pelo engenheiro, não daria certo e o teto poderia desabar.
O empreiteiro não estava presente e o engenheiro insistiu para que meu pai fizesse da forma indicada. Não deu outra: o teto da igreja desabou. O empreiteiro ficou furioso e disse que o engenheiro teria que, no mínimo, entender o que estava fazendo e saber identificar a experiência de um homem.
A obra tinha prazo. Meu pai, junto com uma equipe, precisou trabalhar em dobro para fazer tudo de novo.
Depois do Bebedouro não parou de surgir Projetos: Mandacaru I, Maniçoba, com os núcleos de agrovila I e II. Logo após Projeto Curaçá. Nunca mais ele pegou uma onda de trabalho tão boa quanto essa, embora poucas vezes lhe faltasse trabalho.
Concluída essas etapas ele conheceu um renomado construtor por nome de João Nascimento, com quem trabalhou por alguns anos em todo tipo de serviço na área da construção.
Após um ano estabelecido em Petrolina João recebeu a visita de sua esposa, que, incomodada com a ausência de planos de seu marido tomou a iniciativa de revê-lo, levando consigo Auzinetti, sua filha mais velha, deixando outros três em Mossoró. Porém, João estava com a cabeça um tanto “virada”, pois não pretendia reaver seu casamento, não se sabe por que, uma vez que não tinha aparecido ninguém no seu caminho. Mais uma vez, com muita persistência e humildade, Laura, tentava convencê-lo, junto com sua cunhada Margarida. Ambas conseguiram e ele voltou para buscar os outros filhos.
Houve uma maré baixa de trabalho com o senhor João Nascimento. As coisas estavam ficando difíceis em Petrolina. Em 1974 João foi morar em Goiânia, onde lá já morava seu irmão Pedro Alves.
De começo foi trabalhar com Adônis, cunhado de seu irmão, que poucos anos depois morreria em um acidente de carro. Ele trabalhou em uma oficina de movimento meio fraco.
Foi um tempo muito difícil. Morávamos de aluguel em uma minúscula casinha. Às vezes tomávamos o café da manhã e o almoço só se dava lá pelas duas da tarde quando meu pai recebia algum trocado e comprava uns “quilinhos” de algumas coisas. Ele pensou: “Isso aqui não dá para mim”.
Surgiu, então, a possibilidade dele ir trabalhar em uma grande fazenda e por lá ficou um tempo. Eu fiquei morando de favor, com uma conhecida na cidade, mas ia, vez em quando, visitá-los. Morou lá um ano e seis meses.
Voltou de Goiânia e novamente se estabeleceu em Petrolina, onde tínhamos casa própria. Novamente foi em busca de “seu” João Nascimento e voltou a trabalhar em construções dentro da cidade. Trabalharam em escolas, posto de saúde, centro social, etc.
Nessa mesma época surgiu oportunidade para inscrever-se na CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), para umas sobras de lotes de terra para trabalhar com agricultura irrigável, inclusive no Projeto Maniçoba, que ele ajudou a construir.
Inscreveu-se e ficou na espera para ser sorteado.
Enquanto isso teve a oportunidade de comprar uma caçamba. Foi seu primeiro carro. Com ele transportava cascalho para a construção de uma barragem no Interior e também em Caraíbas Metais. Trabalhou para grandes empresas, como a Andrade Gutierrez.
Enquanto trabalhava em Caraíbas Metais foi chamado para assumir o Lote de Irrigação, em 1982.
Esse lote não era dos melhores, ademais, ele precisava de dinheiro para administrar o mesmo. Ele tomou a decisão de vender a caçamba, que estava sendo dirigida pelo meu primo.
Meu pai sempre fora muito honesto e com isso era uma pessoa crédula, achava que todo mundo era igual a ele. Ainda hoje é assim, à primeira vista, para ele, a maioria das pessoas cumpre com a palavra empenhada, como faz ele próprio.
Ele vendeu o veículo para pessoas conhecidas. Uma parte em dinheiro e outra em cheque, porém, sem fundos. Ele nunca chegou a ver a outra parte do dinheiro. Perdemos. Foi uma boa quantia que o magoou profundamente.
Ele precisou vender nossa casa, razoavelmente grande e em um bairro bem situado. Fomos todos morar na casa da agrovila no Projeto Maniçoba, onde ele havia recebido o lote.
Nesse período eu trabalhei como secretária na Escola da Agrovila, enquanto fazia faculdade. Essas vagas de trabalho foram destinadas primeiro aos filhos de colonos que atendessem aos requisitos curriculares. Fiz teste, fui aprovada. Deveria estar hoje aposentada, não fosse minha impulsividade, tempos depois voltei para Petrolina para trabalhar em outra área. Quem ficou foi efetivado.
O dinheiro investido nesse lote não teve o retorno esperado. A inclinação da terra não era boa para a irrigação, a terra, em si, não era um solo rico. Ele resolveu vender o lote, enquanto ganhava inspiração para saber o que iria fazer, ele foi meeiro ao plantar com um colono que morava nas proximidades. Fomos então morar, novamente, em uma casa de taipa, sem energia, cedida pelo marido de minha tia Tereza. Novamente ele comprou outro carro, uma F-4000 e foi viver de frete. Voltamos a morar em Petrolina.
Minha mãe era nossa coluna, nosso sustentáculo, enquanto pessoa. Nosso ponto de firmeza. Ela percebeu que meu pai não andava muito feliz. Seu contato, seu envolvimento, era com a terra. Ela começou a orar para Deus nos dar outro lote.
Calhou de o sobrinho dele ir trabalhar na CODEVASF, Hildo Diniz, estando lá ele tinha a oportunidade de saber sobre lotes desapropriados, por causa de débitos com água, etc. ou sobre terras não cultivadas. Surgiu a oportunidade de meu pai se inscrever novamente e Hildo logo o pôs a par da probabilidade de meu pai ficar bem distante da agrovila de Maniçoba. Na verdade era perto de umas serras, bem longe, mas a terra era de uma excelente qualidade.
Em cada um de nós o temor de irmos parar tão longe foi crescendo.
Minha mãe via certa área vazia, que ficava entre a agrovila I e a II, era uma área cheia de matagal. Contudo, ela estendia a mão e dizia: “Senhor, nos coloque aqui!”
Mas os planos pareciam contrários. Meu pai foi convidado para conhecer a terra que seria seu lote e demarcar a área.
Mesmo assim minha mãe não se dava por vencida. Estendia a mão cada vez que passava próxima a área desejada e dizia: “Senhor, nos coloque aqui! Não sei como...”.
Deus ouviu sua oração. Não sabemos como se deu a reviravolta, apenas lembramos que ele foi chamado e interrogado se lhe agradava aquela extensão de terra, a qual minha mãe vinha orando. É claro que agradava!
Meu pai começou esse segundo lote do “zero”. Derrubando árvore, arrancando “toco”, como lá no começo, para só depois um trator fazer o serviço completo. Enquanto isso ele instalou-se debaixo de um pé de umbuzeiro, fez uma cabana de lona, o fogão era umas trempes e as panelas estavam pretas de “tirna” consequência das labaredas do fogo que cozinhava a comida.
Depois de desmatado ele nos convidou para conhecer o pedaço de terra. Não me lembro de como chegamos até lá. Mas lembro de minha presença, da presença de minha tia Margarida e de minha mãe. Nós morávamos em Petrolina, enquanto meu pai tocava esse negócio dentro daquela barraca à luz de lamparina e na companhia, de meu irmão Nilson, bem como de muitos pernilongos.
Estávamos em cima da beirada do canal, de porte médio. Por uns instantes olhamos o pedaço de terra descampado, vimos um solitário pé de umbuzeiro um pouco distante e o horizonte de fim de tarde. Estávamos em silêncio, como se olhássemos a “Terra Prometida”. Aos nossos pés uma terra úmida, revirada.
Minha mãe não deixou de mencionar a bondade de Deus para conosco. Cheia de gratidão exaltava a Deus por nos ter colocado perto da agrovila.
Meu pai já tinha aberto uma pequena estrada de onde estávamos até o pé de umbuzeiro. Ele planejava plantar pés de cocos nas duas laterais da estrada. Naquele instante o silêncio foi quebrado por ele:
- Vou construir a casa perto daquela latada de lona, depois corto o umbuzeiro. Mas eu rebati veementemente:
- De jeito nenhum! Não corte não. Vai ficar ótimo ele ali. Ademais é um símbolo da caatinga.
Nosso umbuzeiro resistiu o quanto pôde. Hoje está cheio de galhos e meio desfolhado, às vezes como nossas vidas. Vez em quando brotam umas folhinhas e ele resiste com resiliência.
Minha mãe vinha sempre visitá-los, a ele e meu irmão Nilson.
Aí chegou o tempo de ele ganhar um dinheirinho e construiu dois cômodos de tijolos: cozinha e quarto. Tempos depois mais um cômodo. Pronto. Deu um ultimato à minha mãe que se mudasse de vez para ficar junto dele. Foi o que ela fez. Alguns de nós ficamos morando em Petrolina, Nilson, meu irmão caçula, ficou com meus pais na roça. Logo casou e morou um tempo com eles. Nesse período a casa já estava mais ampliada.
Depois Nilson passou a morar na casa da agrovila.
A cultura principal do lote é manga e coco.
Meu pai sempre foi uma pessoa controlada. Ele costuma falar: “Não dê um passo maior que a perna”. Pouco a pouco ele foi construindo seus pequenos bens.
Ampliou mais ainda sua casa, cercada de alpendre e de coqueiros altos ao redor, com alguns enormes pés de manga em volta. A estrada que ele planejou, anos atrás, está ladeada de coqueiros. Não narro isso como se ele fosse rico. Ao mesmo tempo é uma riqueza para nós. Para um ex-morador de casa de taipa, são muitas as conquistas.
Na verdade apenas explico os frutos conquistados por esse homem trabalhador, sempre com sua mesa farta, para quem viesse e pudesse ali se alimentar.
Uma disposição invejável para seus, hoje, 81 anos (2019).
Nunca o vi esbravejar ante as lutas da vida, que foram muitas, nem se lamuriar, nem se maldizer.
Tem cinco filhos. Pôde ver, e acompanhar, duas filhas formadas em faculdade e um filho que concluiu o ensino médio. Ele tem seis netos, cinco com ensino médio, um com faculdade e uma delas se preparando para tal. Há ainda três bisnetos.
Uma das grandes lutas foi quando ele possuía uma C-10, para frete, e sofreu um acidente batendo de frente com um carro gol, que vinha desgovernado e entrou na contramão. Ele sofreu um corte no supercílio, colocou muita força para não ter o tórax pressionado pela direção de seu veículo. Foi um grande livramento de Deus. As quatro pessoas do gol morreram todos na hora. No banco da frente mãe e filho menor, que dirigia. No banco traseiro dois rapazes que pegaram carona, segundo informações.
O carro de meu pai teve perda pela metade. Ele ficou sem seu meio de sustento maior e imediato. Também não havia dinheiro para o conserto. Mas ele tinha amigos. Fizeram uma “vaquinha” e os primeiros passos foram dados, mas não era suficiente.
Meu irmão Nilson teve papel de grande importância nessa situação. Tomou a dianteira acompanhando o serviço na oficina de um amigo, ajudando no trabalho e fazendo algo corajoso que meu pai não faria: usou a fé, e o que o mecânico pedia ele comprava “na promissória”, pois meu pai tinha muito crédito. Porém, João ficava apavorado e dizia a Nilson: “Você está doido?!” Nilson apenas respondia que Deus ia providenciar os meios. Os gastos foram altos. Mas o carro voltou a atuar fazendo frete e todos os compromissos foram quitados.
Outro grande sofrimento foi a perda de sua querida esposa. Que sofreu um mal estar e internou-se. Entrou em coma, foi para a UTI, e em doze dias Deus a levou.
Certo dia quando ela estava internada ele chorou e disse: “Deus sabe como amo essa mulher”.
Trinta e dois dias depois perderia a nora queridíssima, Fátima, esposa de Nilson e interrogou: “Por que Deus fez isso com a gente?! Isso é uma tragédia!”
Não era de desabafar. Cuidávamos dele, mas não sabíamos o tamanho de sua dor. Anos depois ele disse, em relação à perda de sua companheira: “Só Deus sabe o que passei aqui, nesse lote. Não desejo isso para ninguém. Não fiz uma besteira, por que não compensava”.
Certa vez ele disse que jamais esqueceria sua querida Laura. Algumas vezes choramos juntos. Um choro calmo e contido. O máximo que víamos era seu semblante fechado ou uma pequena e rápida crise de choro, que logo passava. Um dia ele falou:
- Sou como a ovelha. Gemo, mas não berro.
Esse “João é de barro”, amante da natureza. Uma pessoa embasbacada com o cheiro da terra úmida, com o germinar das sementes frutíferas. Acompanha cada passo: a germinação, o floreio, o nascer do fruto, pacientemente, para no final se alegrar com a colheita, embora às vêzes tenha se decepcionado com a mesma, por não ter o resultado esperado. Mas assim como na vida, ele sempre soube aguardar a nova oportunidade.
Minha viagem nesse passeio de volta, do Rio Grande do Norte para Petrolina, foi tão maravilhosa quanto a ida.
No carro estava também Neide, minha irmã. Na parte da frente, além de João, José Alves, esposo de Neide e sobrinho de meu pai, que conduzia o carro. Conversávamos e ríamos com satisfação. Deus foi maravilhoso, como sempre. Porém, uns quinze dias depois, talvez menos, já em nossa casa, fomos surpreendidos com uma notícia muito triste. “Seu Né”, esposo de Dacira, sofrera um infarto e faleceu. Ficamos estarrecidos! Essa notícia não combinava com a pessoa alegre, cheia de vida, que tinha apenas uns probleminhas de saúde, perfeitamente solucionáveis. Foi muito triste.
João não é pescador, contudo fazia isso uma vez ou outra. Certo dia, do ano de 2013, quase três anos depois da viuvez, ele foi até uma área ribeirinha, lançou a rede e “pescou” Maria Adelma, uma mulher bem mais nova, porém, uma conhecida de vista, que tem uma roça na beira do rio São Francisco, morava com o irmão Edivaldo (in memoriam) e com Rute, uma filha adolescente.
Os dois casaram-se em 2018 e estão juntos há sete anos (agora em 2020).
Aí um amigo meu, admirado com a evada diferença de idade, perguntou: “Onde seu João foi arranjar essa mulher tão nova?!” Se ele outra vez fizer essa pergunta, responderei: “Você sabe pescar”?
***