08 - PEDRO ALVES
08 - PEDRO ALVES

Homem valente

Em janeiro de 2010 Pedro Alves e sua Maria Batista completaram bodas de ouro. A família alugou uma linda chácara para a comemoração. Lá estavam presentes, dentre tantos outros, meu pai João e minha mãe Laura, a estimada cunhada de Pedro, esta faleceria em julho desse mesmo ano.

Em abril de 2017 a família se reúne nessa mesma chácara para comemorar o aniversário de 80 anos de Pedro. Meu pai estava presente também, agora com sua segunda esposa.

O dia foi muito festivo, mas Pedro não estava vivenciando essa data tão de forma descontraída. Sua sobrinha, Noeme, lamentavelmente, torceu o pé, caiu e o quebrou. Precisou ir ao hospital e lá disseram que era caso de cirurgia. Pedro até chorou com a situação.

Noeme pediu licença ao médico e com uma bota de gesso compareceu à festividade por uns momentos, comprometendo-se voltar para o internamento cirúrgico.

Pedro conseguiu reunir boa parte da família, mas nem sempre fora assim.

Pedro Alves tinha seis anos quando o pai faleceu, três meses depois ocorria o mesmo com sua mãe. Ele tem pouquíssima lembrança desses momentos tristes. Ele não se lembra do rosto de seus pais. Ele nasceu em abril de 1937.

Depois da morte dos pais ele ficou morando com seu irmão mais velho Diomédio, onde já morava sua irmã Luíza, que era uma verdadeira mãe, bem como outros irmãos.

Pedro tinha gênio forte, como ainda o tem até hoje. Por conta de desentendimento com Diomédio resolveu sair de casa aos doze anos de idade, para a casa de um conhecido. Diomédio não aceitou e foi buscá-lo. Isso aconteceu por três vezes. Como era menor, não tinha alternativa a não ser retornar para o seu suplício.

Aconteceu de ele fugir pela quarta vez. Desta feita foi parar na fazenda de um “Coronel”, chamado “Marinheiro” Saldanha, este era famoso por resolver questões entre pessoas que se desentendiam por qualquer coisa, inclusive andava sempre na companhia de “jagunços”.

Eram sete horas da noite quando chegou a casa desse senhor. “Marinheiro” Saldanha estava sentado em uma cadeira de balanço no alpendre de sua casa. Primeira atitude de Pedro foi tomar-lhe a bênção.

Após abençoá-lo ele perguntou de quem ele era filho, ao saber que era filho do falecido Manoel Ernesto, quis saber o que ele estava fazendo ali. Pedro informou que estava fugindo do irmão mais velho que cuidava dele desde que os pais faleceram. Contou que o irmão era muito bruto e batia neles. Suas costas ficavam tão marcadas, vincadas, que sua irmã lavava com água e sal para não inflamar tanto. A presença do iodo no sal ajudava na cicatrização.

Pedro, genioso, não chorava. Sua irmã Luíza implorava para que ele chorasse, sabendo que era isso que Diomédio buscava arrancar dele.

“Marinheiro Saldanha” falou que não dava abrigo a menino mentiroso. Pedro tirou a camisa e mostrou-lhe as costas ainda com vincos, da surra que tomara naquela mesma tarde.

“Marinheiro” chamou um dos jagunços, mandou que se armasse com uma espingarda, possivelmente, mas Pedro achava que era um rifle. Levasse o menino e conversasse com Diomédio. Se ele quisesse ficar com o irmão, que ficasse, mas se quisesse voltar, seria bem aceito.

Diomédio não estava em casa. Esperaram. Ao chegar, após dar boa noite, mandou Pedro soltar a burra no pasto. Pedro negou-se. Diomédio logo procurou o chicote de couro para surrar Pedro, pois não admitia insubordinação, segundo conta Pedro. O jagunço disse que se ele batesse no menino não iria gostar de ver o que poderia acontecer.

Diomédio virou-se para Pedro e disse: “Se amanhã você estiver aqui, você apanha”. Pedro respondeu que estaria com certeza, pois aquela terra não pertencia só a ele, mas era de todos os irmãos.

O jagunço foi embora, após tentar acalmar os ânimos com uma conversa. Pedro resolveu ficar, mas no dia seguinte tomou a decisão de morar com o tio Izídio Batista, irmão de sua mãe.

Pedro acabou ficando de um lugar para outro, conforme surgia trabalho. Como colher algodão, tirar capim para o gado, dar de beber aos mesmos, etc.

Pedro era um adolescente, com treze anos, de temperamento difícil. Seu tio Izídio o colocou para vigiar um plantio de arroz e ele deveria “gritar”, vez em quando, para espantar a passarinhada que vinha se alimentar da plantação. Ele fazia tudo, menos se movimentar e gritar e acabava se ausentando do local. De tanta raiva seu tio resolveu amarrar-lhe em uma árvore próxima. Por acaso ali perto havia um formigueiro e ele sofreu um pouquinho.

O tio Cícero Ernesto ia passando e vendo aquilo o desamarrou. Pronto. Espalhou-se a fama de tio Izídio ser um homem mau, pois amarrou o sobrinho em cima de um formigueiro para ser torturado. Tio Pedro negou. Disse que as formigas nem eram tantas, apesar de ter sido picado por algumas e o tio Izídio nem as vira.

Aos vinte anos, ainda morando com esse tio, começou a fazer planos para ir para São Mamede, onde estava Braz, seu irmão. Luíza havia casado e depois de um tempo nas Piranhas estava morando em Mossoró. Lá também morava Margarida, que ouviu falar dos planos de Pedro e pediu que passasse em Mossoró, pois ela gostaria de ir junto.

Os dois assim fizeram. Pegaram o trem em Mossoró para Souza, na Paraíba. De Souza seguiram para Patos. Em Patos dormiram em uma pousada e dia seguinte eles pegaram um caminhão “Pau-de-arara” rumo a São Mamede. O carro cruzou com outro, onde, por coincidência, se encontrava seu irmão Braz, que os reconheceu. Braz mandou parar o carro e correu até o outro, pedindo que parasse. Foi aquela alegria esse reencontro.

Pedro morou com Braz, onde, em São Mamede, trabalhou.

Passado um ano voltou para seu sertão, as Piranhas. Foi novamente para a casa de tio Izídio, depois morou em casa de seu irmão João, onde passou três meses.

Recém-chegado, Pedro resolveu prestar atenção nas moças de sua localidade. Olhou, uma... Olhou outra... Eis que seus olhos encontram os de uma moça “muito direita”, um tanto tímida, mas de gargalhada que irradiava alegria. Muito lhe chamou a atenção. Sua prima Maria Batista.

Naquele tempo era comum a essa família, grande, de os primos casarem-se entre si. Brincavam juntos, visitavam a casa um do outro, namoravam e se casavam na adolescência, pelo menos as moças. Na falta de lazer, de perspectiva, era costume casarem-se novos em idade.

Certo dia, alguém disse para o pai de Maria que ela estava de namorico com Pedro. O pai fez um escarcéu. E proibiu terminantemente que ela se aproximasse daquele boêmio. Maria chorou horrores.

Maria era a filha mais velha, muito presa. Não tinha liberdade para nada. Nem em casa dos tios, passeio preferido dos primos, ela podia ir. Só se fosse montado todo um aparato: “Com quem vai? Por que vai? Que horas chega? Por que você tem que ir lá?” E a grande responsabilidade de ajudar a criar seus irmãos mais novos pesava sobre seus ombros, como era o costume.

Nesse mesmo dia Pedro a visitou e ela contou-lhe tudo, a reação de Pedro foi pedi-la em casamento, e perguntou: “Tem coragem de passar fome comigo?” Maria sorriu encabulada. Mesmo diante de um pedido que lhe parecia tão doido, ela respondeu que sim. Então combinaram de fugir.

Pedro avisou a seu irmão, João, e sua cunhada, Laura, que ia “raptar” Maria para com ela se casar. Meus pais levaram na brincadeira. Não deram nenhum crédito.

Mas assim eles fizeram. Maria arrumou seus poucos pertences em uma “trouxa” e esperou a noite chegar.

Quando todos se recolheram e ela teve a certeza de que estavam dormindo, Maria aproveitou o momento e partiu. Pedro esperava por ela lá fora.

Por um acaso inusitado o pai de Maria acordou, quase naquele instante, não se sabe se ele desconfiava de alguma coisa, e foi à procura dela no quarto. Não a vendo ele se pôs a chamar acordando alguns.

Pedro, apressado, tratou de levar Maria para bem longe dali. Ao sair Maria pôde, ainda, a voz de seu pai ouvir. Ela sentiu-se muito triste.

Horas depois o casal adentrou a casa de João, que quase não acreditou no que via.

Em casa de João só havia três redes. Pedro e João armaram as deles e Laura e Maria partilharam a mesma rede. Quase não dormiram. Uma, sentindo muito incômodo; a outra sentindo o peso da decisão tomada, da nova responsabilidade que estava por vir. Junto a isso a tristeza em deixar para trás seus pais e seus irmãos. A voz de seu pai ecoava em seus ouvidos.

Dia seguinte João foi até a casa de também seu tio, pai de Maria, para comunicar o ocorrido. Seu Manoel Batista brigou muito, enquanto João só ouvia. Em dado momento, porém, disse: “O senhor está brigando com a pessoa errada. Seu problema é com Pedro, não comigo”.

Depois Pedro fora ao encontro de seu o tio/sogro que estava enfurecido.

Enquanto Maria estava em casa de seu irmão, ele foi fazer os preparativos para o lar. Alguém tinha uma casa que estava fechada e cedeu para o casal. Pedro se pôs a limpá-la e deixá-la habitável. Aí, um trouxe uma coisa, outro trouxe algo. Algumas coisinhas foram compradas e estava formada a residência. Concluído todo esse trabalho, logo marcaram o casamento, que aconteceu em uma cidadezinha perto.

Em janeiro de 1960, casou-se com Maria, sua prima. O sogro era contra, pois Pedro gostava de beber muito, mas não era alcoólatra, e era namorador. Ele alegava, ainda, que Pedro era meio andarilho, não havia construído nada.

Pedro era grosso que só “papel de enrolar prego”, nos dizeres deles. Na hora de dizer o “sim” o juiz perguntou pelas alianças, que eles não tinham. Pedro respondeu:

- Eu vou me casar com a moça e não com a aliança.

Não por coincidência uma ex-namorada estava assistindo ao casamento. Concluído o enlace, Pedro mandou que os poucos familiares que participaram levassem Maria com eles de volta. Ele saiu com a ex-namorada.

Eu, Auzinetti, também vivi uma quase situação dessas, em relação à ex-namorada de tio Pedro. Um ex-namorado foi em minha casa por volta das 15 horas, no dia de seu casamento, para ter a certeza de que eu estaria presente na igreja, que seria às dezoito horas, aproximadamente. Estranhei. Mas com o passar dos anos considerei que aquilo poderia ser uma possível declaração de amor, embora me parecesse inacreditável, uma vez que ele não parecia ser tão apaixonado assim por mim, como eu não era por ele. Ao término, cumprimentei o casal, junto com todo mundo e fui embora.

Quando solteiro, Pedro, não se sabe se por necessidade ou passeio, passava sempre defronte a uma igrejinha montado em seu burro e levantava poeira, “tantas” fez que o padre já o conhecia e se aborrecia com aquilo, e com razão.

Certo dia, Pedro bêbado foi chamado atenção de maneira grosseira pelo impaciente padre, que, segundo Pedro, o chamou de “burro” e “cavalo”, por não ter consciência da poeira que causava. Pedro, em sua ignorância de moço sem juízo, e com a cabeça afetada pelo álcool adentrou quase metade da igrejinha de supetão em seu cavalo causando susto e alvoroço. Ele hoje reconhece que não foi uma atitude digna, e também xingou o padre.

O tio/sogro, Manoel Batista, intrigou-se dele por três anos. Pedro não lhe dava à mínima. Sempre que via o tio tomava-lhe a bênção. Ora recebia de volta apenas o silêncio e a indiferença na virada de cabeça, ora ouvia o tio resmungar: “A vergonha desse povo o cão comeu com farinha”.

Passado um tempo, vencido pela teimosia de Pedro, o sogro se rendeu e ambos fizeram, razoavelmente, as pazes.

Casado, Pedro Alves continuou farreando e era muito criticado. Maria era a típica “ovelha” mansa, introspectiva .Ainda o é até hoje.

Cansado disso tudo, retornando de uma farra, começou a meditar. Vinha a pé. Vestia um terno branco de linho. Usava um chapéu, costume mantido até hoje. Trazia o paletó jogado no ombro e pensava: “Não tenho meus pais, meus irmãos estão espalhados. Meu sogro não me dá valor, meus cunhados me ignoram... E eu aqui, com a “cara” cheia de conhaque... O que eu estou fazendo?! De hoje em diante vou aprumar minha vida”.

Depois dessa determinação colocou a vida em ordem: não bebeu mais, parou de fumar, depois de dez anos como fumante. Todos duvidavam que ele deixasse esse vício, mas ele, convicto, dizia: “Eu me domino”.

Em 1964 foi morar na pequena chácara do marido de Luíza, Pedro Batista, trabalhando na agricultura. Nessa ocasião aconteceu um fato para lá de maluco e meio engraçado. Estava em roda, conversando, quando um touro, de porte médio, meio “adolescente” ainda, destrambelhado, começou a chifrar os homens. Uns correram, outros foram atacados, aí o mesmo partiu para cima de Pedro, que sempre foi meio “pedra noventa”. Ele atracou-se com os chifres do animal, e chegou a cruzar as pernas sobre o lombo do mesmo, sendo arrastado no chão.

O “bicho” era mesmo valente. Ele mordeu Pedro, segundo contam; Pedro o mordeu de volta em seu beiço, segurou com tanta força que o rasgou, mordeu-lhe também a orelha e só aí o animal o soltou e os outros homens conseguiram espantá-lo e socorreram Pedro.

Até que um dia apareceu um comprador para umas poucas cabeças de gado. Quando viu o tal touro, quis saber o que foi aquilo, e aquele touro “quase sorrindo” ele não compraria. Minha tia Luíza respondeu:

- Homem, nem queira saber. Isso foi coisa de um irmão meu.

Depois, a história do touro que “sorria”, virou uma algazarra, embora o pobre animal tenha sofrido.

Pedro e Maria tiveram oito filhos, uma “escadinha” em termos de idade, porém, três deles faleceram. Um chamado Paulo, de quatro anos, a quem Pedro tinha muito apego, outro chamado Moisés, de apenas seis meses.

Em 1970 o casal veio para Petrolina, ele era também pedreiro e trabalhava no que aparecia, até seguir para o Projeto Bebedouro, quatro anos depois, ele, assim como os irmãos, foi trabalhar na construção de canais e de casas da agrovila. Também trabalhou na construção da Usina de açúcar da AGROVALE, próximo a Juazeiro, Bahia, não muito distante de Petrolina, onde já moravam, também, seus irmãos Braz e João.

O terceiro filho a falecer fora Natanael. Ele estava adoentado quando sua mãe, Maria, precisou ir às Piranhas, em Rio Grande do Norte, visitar a mãe dela, que estava muito doente também. As crianças ficaram com minha mãe Laura, cunhada de Pedro e prima dos dois. Passado uns dias a criança piorou bastante, foi levada ao médico, mas não houve jeito e a mesma faleceu.

Pela manhã cedo Pedro deu muita atenção à criança, antes de ir para o trabalho. Saiu de casa, andou um pouco e com o coração apertado voltou.Tornou a abençoar o filho, sentindo que ele não estava nada bem. No trabalho, lá na AGROVALE, nem conseguia se concentrar.

Depois de certo tempo apareceu um carro estranho, diferente. Pedro estava atento a qualquer movimento. “O menino morreu”. Pensou. Estava certo. Alguém veio trazer-lhe a triste notícia. Pedro sentiu seu coração abalar-se.

Dar a notícia a Maria não tinha como. Se mandassem uma carta seria capaz de Maria chegar de volta, sem que a recebesse. Pairava no ar a grande preocupação em como comunicar-lhe o tal acontecimento fúnebre, dali a poucos dias Maria estaria de volta. Nós sempre tememos o peso das palavras. Minha mãe tinha consciência disso. Mas, felizmente Maria recebeu a informação sem grandes abalos. Ela soube administrar sua tristeza e sua dor.

Em 1975 a convite de seu cunhado, Adônis, que falava maravilhas de Goiás, foi morar na cidade de Goiânia. Lá ele trabalhava ora de pedreiro, ora tomando conta de fazenda.

1982 ele volta de Goiânia para trabalhar novamente na terra de sua irmã. Trabalhou pouco tempo, pois seu irmão Diomédio o convidou para tomar conta da fazenda dele. Pedro achou por bem aceitar. Trabalhou apenas um ano, pois adoeceu severamente das vistas. Precisou ir para Fortaleza fazer tratamento.

Em 1984 ele retorna para Goiânia, pois a estrutura médica de lá seria melhor para que ele desse continuidade ao tratamento. Nesse ano decidiu estabelecer-se de vez.

Radicado em Goiânia, no ano de 1989, chegou a casa dele aquela que para ele era como uma mãe, sua irmã mais velha, Luíza. Ela não trazia boa notícia, estava ali para tratamento, pois se encontrava com câncer.

Essa notícia foi um baque para Pedro. Mas ele era duro na queda, era positivo, mostrou disposição para a batalha e achava que sua irmã ficaria boa. 

Luíza passou um ano entre a casa de sua filha, Ester, que morava no interior próximo de Goiânia; e de outra em São Paulo, Noeme. Mas seu ponto permanente era a casa de seu irmão, por escolha.

Foi retirado o seio de Luíza, fez todo o tratamento que lhe convinha, mas nada adiantou: Luíza foi desenganada. Pedro era altamente atuante e presente, cuidando também de tudo.

Quando estava próxima de sua morte ela demonstrou um grande desejo de rever seus irmãos, em especial Diomédio, este colocava todo tipo de obstáculo para não comparecer a esse encontro, dado a distância.

Pedro ajoelhou-se e pediu com fé que Deus incomodasse, que induzisse aquele homem para vir visitar a irmã, que já estava muito mal. Deus ouviu sua oração.

Diomédio, vindo de Mossoró com sua mulher e sua sobrinha, Dacira, filha de Luíza, passou em Petrolina e pegou João e Braz, por fim chegaram a Goiânia, o que muito alegrou sua irmã.

Os irmãos passaram uma semana ou um pouco mais e retornaram para suas famílias. Três dias depois Luíza passou muito mal, foi internada e em novembro de 1990 faleceu, deixando seu irmão muito arrasado com a dor dessa perda.

Tio Pedro sempre nos visita. Em dezembro de 2006 ele veio para nossa casa. Ele estava sentado à mesa quando minha mãe passou por ele e observou uma pequena cicatriz em seu couro cabeludo, levemente afundada, que impediu o crescimento de cabelo sobre a mesma. Curiosa, ela quis saber como ele adquirira aquela cicatriz. Ele explicou: Tinha uns doze anos. Diomédio dividia as tarefas da roça entre os irmãos, no caso eram fileira de milho, feijão ou o que fosse. Quando dava tempo eles terminavam lá pelas seis horas da tarde. Mas à vezes não conseguiam atingir a meta.

Quando Diomédio chegava pedia conta a todos os irmãos sobre as tarefas, se haviam sido cumpridas. Caso não tivesse sido ele começava agredindo-os verbalmente e para melhor descarregar sua raiva ele atirava o que tivesse na mão ou pegava o primeiro objeto para punir o “desobediente”. Lourenço, um dos irmãos mais novos, suportava tudo em silêncio. Já Pedro, de temperamento sanguíneo, rebatia com veemência. Em uma dessas vezes Diomédio bateu com o cabo de uma enxada em sua cabeça e a cicatriz permanece como uma triste lembrança.

Pedro afirmou, ainda, que caiu debatendo-se, mas tinha que levantar-se sob os gritos de seu irmão mais velho.

Tempos atrás, na maioria das vezes, passado tantos anos, Pedro não conseguia contar esses fatos sem embargar a voz. As palavras saiam pausadas por entre os lábios trêmulos. Ele comprimia-os tentando conter tal reação.

Mas os anos se passaram. Eles amadureceram, envelheceram e, ressentimentos à parte, muita coisa mudou. Pedro e Diomédio quando adultos trabalharam juntos, como foi referido, e Pedro o visitava de tempos em tempos quando resolvia rever a família, e era quem sempre telefonava, em busca de notícias desse irmão.

Em 2005 Diomédio fez a extração de um dente molar e passou a sofrer bastante com o mesmo, que não cicatrizava, ora estando melhor, ora pior. Até que em 2006 a situação se agravou bastante. Ele fez vários exames e ficou constatado que havia um tumor. Após isso foi feito uma biopsia e o resultado assustador chegou: era câncer. O resto desse ano ele passou fazendo quimioterapia, e me parece que radioterapia também. Infelizmente ocasionou um efeito colateral causando-lhe fortes dores.

O médico dele, em Mossoró, o encaminhou para Natal. Lá ficou comprovado que ele estava com osteoporose em alto grau, dizem que era isso o que lhe causava as fortes dores. Diomédio, meio desorientado, com tanto sofrimento, liga para Pedro e se diz desenganado pelos médicos.

Pedro toma conhecimento que a aposentadoria de Diomédio não é o suficiente para cobrir as despesas, uma vez que havia muito gasto com remédios. Ele, então, passa a depositar vez em quando, certa quantia para ajudá-lo.

Diomédio ligou, em outra oportunidade, para falar das insuportáveis dores que sofria noite e dia e que os médicos de Natal afirmaram que mais nada podia fazer. Pedro pede que ele não se desespere e combina com ele a hora que sua filha mais velha, Marta, pastora, iria falar com ele por telefone para orar, e que ele seria curado. Assim aconteceu. Marta fez uma oração, cedinho da noite. Diomédio dorme bem e um “ser” o visita em sonho, não me lembro dos detalhes desse sonho. Diomédio ficou eufórico, pois acordou completamente sem dores, e imediatamente diz: “Estou curado”. Realmente, esse tipo de dor ele não sentiu mais.

Certo dia ele liga para Pedro, que, dentre os irmãos foi o que mais lhe dera atenção, e choroso, cheio de emoção, diz: “Pedro, você é tudo para mim. Irmão, amigo, pai, conselheiro, motivador...” Não consegue dar continuidade à fala. Ambos choram.

Diomédio ia prosseguindo com seus males próprios da velhice. Depois do segundo semestre de 2009 ele piorara bastante e vivia procurando especialistas médicos. No final desse mesmo ano um deles o encaminhou para Natal.

No começo de 2010 ele estava muito mal. Pedro e João foram visitá-los. Primeiro chegaram a Mossoró, depois foram com um dos filhos dele até Natal.

Pedro chega à borda do leito em que se encontra seu irmão. Observa-o, analisa suas condições. Condói-se bastante. Seu coração fica apertado. Cadê aquele homem distinto, falante? Ele chama pelo irmão. Não há sinal de consciência. Diomédio não responde, não o ouve. Aparentemente está meio em coma. Pedro insiste e profere palavras de conforto. As lágrimas correm dos olhos de seu irmão. Ele teve a certeza de que foi ouvido.

Os irmãos saem de lá com um lamento em seus semblantes. Afinal, fazem parte da mesma teia sanguínea, apesar do passado, passado este que não mais encontra lugar nesse momento.

Em abril de 2010, Diomédio faleceu aos 86 anos de idade.

Pedro está estabelecido. É reconhecido por acolher bem a todos. Seus cinco filhos são: Neto, Marta, Lúcia, Leó e Laércio, incluindo netos, bisnetos e agregados. As portas de sua casa estão sempre abertas para quem chega. Sua mesa é continuamente farta. Tem residência própria e depois de uns anos comprou seu primeiro automóvel. Seus filhos estão bem situados em Goiânia, morando nas proximidades.

Pedro, “Petrus”, “Pedra”. Um vencedor.

 

 

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