Um desbravador
Completara um ano, em dois mil e cinco, que Diomédio se livrara de uma situação muito difícil. Extraíra um dente e este demorava em cicatrizar, piorando dia a dia, até que chegou ao seu conhecimento a terrível descoberta: havia um tumor. Depois da biópsia ficou constatado o era câncer.
Foram meses muito dolorosos, de grandes agonias. Foi feito uma cirurgia, parte de seu maxilar fora arrancado, embora não fosse visível na face. Como se não bastasse foi descoberto uma ramificação do tumor na direção da garganta. Foi uma cirurgia longa e delicada, mais ainda considerando que ele estava com oitenta anos.
A radioterapia, após a cirurgia, o deixava debilitado, dado aos enjoos e a queimação na mucosa bucal, impossibilitando-o de se alimentar com alimentos sólidos, por dias, suprindo-se apenas com líquido.
Muitos achavam que ele não iria resistir, mas os meses se passaram e ele foi aos poucos se recuperando, ganhou peso e certa vitalidade. Tudo parecia correr bem, até aparecer, um ano depois, terríveis dores nos ossos, que o levaria à emergência várias vezes, porém, sem sucesso de cura. Nada fazia as dores cessarem. O médico que o acompanhava, sabedor de seu histórico, o fez retornar imediatamente a Natal.
Em Petrolina logo chegou a notícia de que o “mal” se espalhara pelos ossos.
Estávamos em Mossoró, na localidade onde morava Diomédio, eu, Auzinetti, minha mãe, Laura, e minha tia Tereza. Resolvemos visitá-lo.
Fomos recebidos pela sua segunda esposa, trinta e um anos mais nova que ele, em seu confortável apartamento. Ela nos conduziu ao quarto dele, onde o mesmo se encontrava no banheiro arrumando-se.
O quarto era razoavelmente espaçoso. Havia uma porta que dava para uma pequena sacada, por onde entrava uma formidável ventilação, nesses dias tão quentes em Mossoró.
Logo ele saiu do banheiro e veio ao nosso encontro. Estava arrumado com esmero, roupa de “pano passado”, exalava frescor pós-banho. Dirigiu-se a nós com largo sorriso, bem franco, que eu já conhecia tão bem. Jeito educado, carinhoso e amigável.
Abraçou-nos forte e beijou-nos citando cada nome ao nos tocar. Todos ficamos emocionados. Mas ao nos acomodarmos fomos relaxando e a conversa fluiu normalmente.
Quisemos saber da doença, e tanto ele como a esposa respondiam aos nossos questionamentos. Ele estava com bursite, artrose e osteoporose em nível alto. Isso em conjunto causava-lhe muitas dores. Deixei-me levar pelo relato, mas sempre querendo saber qual era o posicionamento dos médicos. As respostas eram vagas. Não se sabe quando ele teria melhora do sofrimento que sentia.
Falamos sobre tudo, e de repente o passado foi envolvido na conversa, foi a deixa que precisava. Comecei a fazer perguntas e ele foi respondendo.
Sua mãe, Maria Batista, irmã de Joaquim Batista, também mãe de meu pai João, muito se interessava pelos estudos dos filhos, em especial por Diomédio, por ser o filho mais velho e por ser o mais desenvolto entre os irmãos. Motivado, seu pai trouxe alguém de fora, um conhecido, para que ensinasse as crianças e estas aprendessem a “carta de ABC”, a “cartilha” e as “quatro operações de contas”, eram o suficiente para muitos naquela região sem posses.
Diomédio, mesmo adolescente, naquele interior distante da civilização mais moderna, destacava-se por sua destreza. Percebendo isso, quando ele estava com 13 anos, os pais o enviaram para Iraúna, PB, Estado vizinho ao Rio Grande do Norte, para ficar em casa de um padrinho “farmacêutico” para que pudesse estudar.
Em casa desse padrinho muito sofreu. Este tinha dois filhos, mais velhos do que Diomédio, que roubavam vidros de tônicos, vendiam e esperavam que Diomédio lhes acobertasse o erro. Como ele não o fazia recebia a antipatia de ambos e marcação serrada por parte deles, em compensação seu padrinho o tinha em mais alta estima, o que causava inveja por parte dos rapazes.
Estudava pela manhã. Por conta desse horário era preciso madrugar. Muitas eram as idas e vindas para trazer latas de água penduradas nas extremidades de uma vara, que ia sobre os ombros, até encher todos os potes da casa.
Uma vizinha, vendo o resultado de seu esforço, contratou-o para fazer o mesmo serviço para ela. Começou a ganhar um dinheirinho, comprava, então, rapadura e bolachas para ser seu lanche, uma vez que a comida naquela casa era bem regrada. Por conta da possibilidade de ganhar um dinheirinho extra ele passou a madrugar mais ainda.
Mas a sorte estava do seu lado. Ao frequentar a missa o menino esforçado chamou a atenção do padre, que o convidou para ser coroinha, com direito a remuneração. Toda missa ele estava lá. Primeiro tocava o sino, convocando os párocos à missa. Usava o turíbulo com incenso, e exercia outras tarefas. Às vezes ficava de longe contemplando o ritual, o padre ficava de costas para os fiéis enquanto rezava a missa, parte em latim.
Sobrecarregado, ele dispensou o pequeno trabalho que sua vizinha lhe encarregara, ficando apenas com a responsabilidade da casa onde morava e da igreja. Continuou juntando o parco dinheirinho que o sacerdote lhe pagava. Guardava-o, bem guardado, pois os tais rapazotes o roubariam.
Mesmo adolescente Diomédio era astuto. Quando estudava um colega de classe birrento resolveu persegui-lo e ficou de marcação. Diomédio fazia de tudo, mas não se livrava da perseguição do tal. Ele, então, teve uma atitude inesperada, resolveu trazer, vez ou outra, um presentinho para seu perseguidor. Isso realmente surtiu efeito e os dois tornaram-se amigos.
Eram férias da escola e como fizera no ano anterior preparava-se para voltar ao seio de sua família. Sentia muita falta do convívio dos pais e dos irmãos. Este ano, em especial, encontrava-se mais ansioso que no ano anterior.
Chegara a Almino Afonso quase noite, depois de um dia inteiro de viagem, para fazer um percurso de apenas 200 km, isso em uma velha Kombi trafegando por uma estrada extremamente esburacada.
Almino Afonso era uma cidadezinha pequena. Todos se conheciam. Diomédio atravessava a rua com uma pequena mala na mão, quando ouviu seu nome ser chamado, insistentemente.
- Você é Diomédio? Ele confirmou reconhecendo um velho amigo. Você não recebeu meus telegramas?
- Telegramas?! Admirou-se Diomédio. Não recebi telegrama nenhum.
A fisionomia do tal senhor pareceu contrair-se preocupado.
- Pois é... Eu enviei-lhe dois. O último foi por esses dias. As notícias não são boas... Seu pai esteve muito doente...
- Doente?!
- Sim. E... Infelizmente... Faleceu... E já foi enterrado. Era novembro de 1940. Ele estava com quinze anos e onze meses.
- Meu Deus! Foi o coro de nossas vozes que ecoou no quarto. Como todos sofreram... Falei admirada.
Tanto minha mãe como minha tia desconheciam a forma como ele recebera essa notícia.
Diomédio, com a voz entrecortada pela emoção, tentava reter as lágrimas que inundavam seus olhos. Seu lábio inferior, levemente caído, consequência da cirurgia, tremeu por um momento. Sua boca se fechava e se abria procurando saliva. Para empurrar o nó na garganta apelou para um copo de água que estava próximo e explicou que os medicamentos ressecavam sua boca o tempo todo, o que também era verdade.
- Foi a notícia mais dolorosa que eu recebi. Fiquei meio suspenso do chão. Procurei sentir o chão e não conseguia. Explicou ele retornando ao assunto. Quis deixar a mala na casa do tal senhor e ir para o sítio Piranhas a pé (que era bem longe), prometendo pegar a mala depois. Mas o senhor gentilmente não permitiu e providenciou alguém para me levar a cavalo. Foi um percurso angustiante, só pensava como reencontraria meus irmãos e minha mãe. Quando cheguei a casa todos correram ao meu encontro.
Nessa hora retirou os óculos. Os dedos evitaram que as teimosas lágrimas descessem. Mais um gole de água.
- Éramos um só bolo - prosseguiu ele -, minha mãe, grávida de cinco meses, e João, seu pai, era ainda um bebê, informou-me, juntamente com oito irmãos. Choramos agarrados. Foi um pranto inenarrável.
Diomédio junto com sua mãe, uma mulher extremamente determinada, deram continuidade à vida. Era preciso ser forte. Sabia que nunca mais voltaria a Iraúna para dar continuidade aos estudos.
Segundo ele, seu pai morrera de trombose.
Tudo transcorria normalmente, com ele cuidando dos afazeres da roça, até o dia do parto de sua mãe, fevereiro de 1941.
Chegado o dia foi chamada a parteira das redondezas, por nome de Chiquinha. Após o parto a placenta ficou retida e a parteira não sabia como agir, e Maria Batista, mãe de Diomédio, em sua ignorância, não queria que chamasse ninguém mais, nem mesmo um médico.
Diomédio, seguindo conselho, foi a casa de Sebastião Arregalado, um senhor abastado que ficava nas proximidades, em busca de um remédio para sua mãe.
Seu passo era acelerado, quase correndo. O coração estava apertado. Não tinha pai e não podia agora ficar sem a mãe, simplesmente não podia, pensava em seu desespero. Estava de luto há apenas três meses... A vida não poderia ser tão dura.
O medicamento que não faltava em certas casas naquela época, faltou em casa de Maria, era a velha “aguardente alemã”, ou seja, “água inglesa”. Diziam, em suas ingenuidades, que esse medicamento era muito eficaz, “limpava a mulher por dentro”, bem como alguns analgésicos. Mas esse medicamento que Diomédio trouxe não surtiu efeito nenhum em Maria.
Diomédio ia sempre às casas dos tios que ficavam nas proximidades e contava a situação. Todos sabiam da determinação ferrenha de Maria “de Neco”, por isso hesitavam em contrariá-la.
No oitavo dia, Diomédio não resistiu. Selou o cavalo, escondido, para que seu tio Manoel Batista fosse a Rafael Godeiro, um lugarejo não muito distante buscar uma senhora afamada em sua profissão de enfermeira. Manoel, irmão de Maria, se pôs a caminho fazendo os cavalos darem tudo de si. Um dos cavalos ia vazio, o que transportaria a tal enfermeira na volta.
Alguém correu e de supetão deu a notícia a Maria, afirmando que o próprio Diomédio havia ido à busca de um médico. Ela que estava frágil nem percebeu sua condição ao pular da cama alarmada. Precisou de várias pessoas para segurá-la. Por um instante ficou completamente fora de si, gritava e não falava “coisa com coisa”. Com muito esforço acalmaram-na e ela voltou a deitar-se. Recuperando um pouco a lucidez, reclamou com Diomédio: “Por que você teimou?!” Perguntou. “Só quero sua melhora, mamãe”. Afirmou Diomédio.
Eram inevitáveis certas lembranças lúgubres por parte de Maria, nesse estado. Muito tempo atrás, uma parturiente, sua conhecida, sofrera bastante com complicações do parto. Também uma de suas irmãs, em 1932, passara dias com a placenta colada. Ninguém sabia o que fazer. Médico nem se via. Sua irmã, ciente de que não viveria começou a despedir-se de todos os familiares e conhecidos que circundavam sua cama. Quis o mau destino que Maria Batista herdasse tal sina.
Depois desse pequeno diálogo com seu filho mais velho, Maria mandou chamar a todos os filhos. Abraçou um a um, contemplando cada rosto, sabendo que seria a última vez que os via. Estava fraca, mas abraçou e beijou cada um deles.
Diomédio ficou por último. Olhou-o mais detidamente. Abraçou-o bem mais forte e pediu:
- Não se separem. Não dê meus filhos para estranhos. Ela voltou a deitar-se e logo faleceu.
Novo clamor se sucedeu naquela casa. As crianças menores tinham um assombro na face, parecia não entender tudo aquilo. Os maiores, aos prantos, tentavam aproximar-se da cama clamando pela mãe, no que eram contidos pelos adultos.
Diomédio sentou-se em um canto qualquer da casa, na verdade acocorou-se, segurou o rosto com as mãos e deixou que os soluços lhe sacudissem. “Como era possível?! Como era possível?!” Era a interrogação que martelava sua mente.
Dali a pouco a enfermeira chegou, no entanto era tarde. Sua presença não teve nenhuma serventia, a não ser dar um sermão na velha parteira.
- Sua criminosa! Como pôde perder tanto tempo?! Por que não procurou ajuda, mesmo contra a vontade da paciente? Interrogou-a exasperada.
Diomédio tremia a voz durante a narrativa, ao mesmo tempo em que bebia água. Ele sempre teve fama de carrasco entre os irmãos, e fora mesmo. Mas agora eu o via com outros olhos. A vida deixa marcas, altera personalidade que só a psicologia explica, embora tenhamos que arcar com as consequências. Para que nos ater a situações do passado, nesse caso, considerando uma vida tão marcada?
Logo todos os cabeças dos Batistas estavam reunidos, por causa do triste motivo. Trataram de fazer o enterro. Entre estes se encontrava o único inimigo de Maria, que também era seu irmão.
Maria e Salvino haviam herdado tantos hectares de terra de seus pais, Álvaro Batista e Joana Alexandrina. Esses dois irmãos viviam brigando quanto às limitações da terra. Era um tal de arrancar cerca e estabelecer cerca, em meio às brigas e horrendas ameaças.
Certa vez, em dias de parir, Maria montou em um cavalo e foi à busca de Osório Maia, que morava em Timbaúba, interior de Catolé do Rocha. Osório era uma espécie de “coronel” das antigas, de renome, pessoa de destacada posição social. Sua palavra valia tanto quanto a de um delegado.
Osório veio até às Piranhas e procurou ouvir a versão dos envolvidos, Maria e Salvino. Ele examinou as limitações da terra e decretou para Salvino: “Eu vou enterrar aqui essas estacas. Seja a última vez que eu faço isso!”. Osório retornou e a contenda feneceu, porém, a intriga entre os irmãos nunca teve fim.
Maria fez questão de comunicar a todos: “Quando eu morrer não quero que ele chegue perto do pau de minha rede”. Isso por que os mortos, naquela época e naquela região, eram conduzidos de forma extremamente rústica. Era estendida uma rede e esticada sobre um varal com quatro pontas, de maneira que cada homem segurava em uma ponta de vara, ficando dois homens na frente e dois atrás, que transportavam o defunto. Dependendo do trajeto havia revezamento. Se a doença não fosse grave, e a família não fosse medrosa, a rede seria reaproveitada.
Quando a família era muito pobre tomava-se uma rede emprestada de alguém que já tinha uma reservada para esse fim.
Quando Maria morreu, Salvino, propositadamente, não respeitou o pedido dela, foi o primeiro a querer carregá-la.
A mãe de Diomédio foi vestida em uma mortalha, assim chamada uma espécie de camisolão longo, de mangas compridas, branco, de tecido chamado “morim”, que não podia ser costurada à máquina, segundo a tradição, era apenas alinhavada à mão. Outros escolhiam ser enterrados com o traje marrom de São Francisco de Assis.
Muitas vezes o defunto era enterrado léguas distantes. Pessoas seguiam-no a pé, enquanto quatro homens levavam a ponta da grade de varas apoiada no ombro. Outros iam a cavalo prontos para revezar quando houvesse cansaço. O ritmo era acelerado, fazendo o defunto sacolejar.
Com Maria não fora diferente.
Salvino adiantou-se e segurou uma das pontas da grade, que eles chamavam de “pau de rede”. Os demais familiares foram veementemente contra, mas nada adiantou, e para evitar confusão em uma hora tão inapropriada deixaram-no de mão.
Anterior a tudo isso, Salvino ausentou-se, por um período, para servir às forças armadas, há dúvida se foi exército ou marinha. Quando voltou apaixonou-se pela sobrinha, Rosa, filha de seu irmão Joaquim, meu avô, chegando a ficarem noivos. A despeito da contrariedade da família, nada os fazia mudar de ideia. Mas quis o destino separá-los. Rosa apaixonou-se por outro e terminou o noivado.
Salvino era alto, moreno, bonitão. Vestia-se de terno de linho, que era o luxo da época, inclusive passado a ferro depois de umedecido em um leve mingau de goma, para que a roupa ficasse meio armada e meio brilhante.
Durante o período das forças armadas Salvino trouxera consigo o mal daquele século: sífilis. Tentara se curar na cidade de Patu, RN, mas o problema apenas amenizara-se. O médico profetizou seu fim: “Será de muitas dores e provavelmente ficará louco”. É o que contam.
Com o tempo a predição do médico se concretizou. Salvino intercalava períodos de lucidez e loucura, não bastasse tinha ainda ataques epiléticos. Quando estava em crise vivia acorrentado, senão “ganhava o mundo” e perturbava as pessoas.
As sobrinhas menores, minha tia Tereza e minha mãe Laura, tinham pavor dele, passando bem distante, mesmo assim ele se arremessava de encontro a elas, sendo contido pelas correntes, fazendo as meninas correrem apavoradas.
Nesse período tinha muitas alucinações e vivia conversando com seus fantasmas. Dizia ver constantemente uma tal de “Mariinha”. Muitos achavam que ele estava vendo o fantasma de sua irmã Maria. Tinha mais ou menos cinquenta anos quando, em 1948, falecera.
Diomédio estava com dezesseis anos quando sua mãe faleceu. Sentia-se desorientado naquela casa cercado pelos oito irmãos menores.
Novamente os Batistas se reuniram na tentativa de ajudar Diomédio. Resolveram entre si dividir as crianças, cada um dos tios ficaria com a guarda de alguém. Diomédio foi incisivo, fazendo prevalecer a vontade de sua mãe: “Daqui não sai ninguém”. Ele perguntou a cada um dos mais velhos se queriam morar com os tios. Ninguém queria.
Depois de muita insistência e a argumentação de que seria difícil para ele manter aquela família, Diomédio cedeu e alguns foram afastados uns dos outros. A velha parteira pediu para levar o bebê recém-nascido, que infelizmente faleceu meses depois. Meu pai, João, que tinha apenas três anos, foi levado pelo tio Cícero Ernesto, que o criou muito bem.
Diomédio tocou a vida junto com os demais, sendo assistido constantemente pelos tios, cada dia um o visitava e o orientava. Embora em pouca coisa, dado a personalidade emancipada de Diomédio. Ele era tão determinado quanto sua mãe. Possuía uma maturidade que causava espanto.
Dias depois o médico, doutor Raul, que atendia por aquelas redondezas, sabedor da triste história dos meninos resolveu fazer uma visita à família, mas trazia consigo uma ideia e convenceu Diomédio a concordar. Sugeriu que as três meninas fossem para um internato de freiras que ficava em Martins. Lá elas teriam a oportunidade de aprendizagem das mais variadas, e Diomédio seria aliviado, em parte, do peso da responsabilidade que era criar aquelas crianças tão pequenas. Após muita relutância ele concordou, mas iria apenas Margarida e Raimunda, Luíza, que tinha 12 anos, ficaria, pois era de grande ajuda nos serviços domésticos.
Assim foi feito. Margarida e Raimunda seguiram de coração partido para aquele lugar.
Diomédio ficou com os quatro maiores, mas não demorou para que eles tomassem outro rumo. Esses irmãos não suportavam o autoritarismo, a personalidade controladora e a agressividade de Diomédio. Pedro foi morar com o tio Izídio, Lourenço morreu tempos depois. Braz resolveu sair de casa sem rumo, vindo parar em Petrolina, anos depois. Ficou Luíza, com Diomédio que se encontrava casado.
Em 1942 houve uma seca tremenda, mas nada que os amedrontassem. Viviam acostumados com a escassez de inverno.
Junto com os irmãos e alguns da vizinhança, Diomédio resolveu enfrentar a seca dentro de suas possibilidades. Ele decidiu percorrer parte do rio Piranhas e descobriu uma área de vazante e iniciou uma plantação de feijão, batata doce, abóbora, melancia, melão. Vários homens se uniram nessa tarefa, liderados por Diomédio.
Diomédio tomou uma nova decisão, para espanto de muitos resolveu cavar um poço próximo ao rio, na parte seca,e surpreso viu a água jorrar. Utilizando a água obtida do poço resolveram plantar milho e irrigar a área sulcada. Enquanto muitos padeciam com a seca, esse grupo colhia os louros de seus empreendimentos.
Em 1944 Diomédio casou-se pela primeira vez, estava com quase 20 anos.
Margarida e Raimunda haviam voltado do orfanato e amargaram maus momentos nas mãos do irmão embrutecido. Esse era o grande e indomável defeito de Diomédio: personalidade forte, logo ele que era tido em alta conta nas proximidades, pela sua vizinhança.
Quase nem se ouvia falar que existia crente evangélico naquela época, era muito difícil, mais ainda nas brenhas daquele Sertão.
Mas Pedro Batista, primo de Diomédio havia se tornado um crente. Este procurava ir, vez ou outra, até um lugarejo chamado Rodeadouro, distante meia légua, percorrida a cavalo, só para assistir aos cultos evangélicos pregados pelo pastor Francisco de Assis, primeiro pastor a levar a Palavra bíblica às Piranhas, em um culto marcado pelo próprio Pedro.
Pedro insistiu para que Diomédio comparecesse ao culto. Diomédio aceitou e foi ouvir o humilde pregador em casa de um conhecido deles.
A princípio ele achou tudo muito interessante. A convicção daquele pregador causava-lhe admiração. No final do culto chamou o pastor em um canto e quis saber se poderia fazer-lhe uma pergunta. O pregador assentiu e ele indagou:
- O que você me diz dos padres?
- Dos padres?! Admirou-se o pastor Francisco.
- Sim. Quero saber. O que você me diz?
O pastor ficou em silêncio por uns instantes e tacou-lhe uma resposta sábia:
- Não tenho o que dizer dos padres. Não estou aqui para falar de ninguém. A pessoa que me interessa falar é de Jesus Cristo.
- Pois me fale desse Jesus. Pediu Diomédio. Francisco sorriu com satisfação.
Aproximadamente uma hora o pastor discorreu sobre os pontos principais da Bíblia, destacando as promessas referentes ao nascimento de Cristo, predito pelos profetas antigos, chegando ao cristianismo, a vida e a pessoa de Jesus Cristo em si. Seus milagres, sua morte, sua ressurreição e por fim a promessa de sua vinda pela segunda vez.
Diomédio ficara impressionadíssimo e quis logo saber como conseguir uma Bíblia. Seguindo sugestão do pastor Francisco, Diomédio entregou-lhe certa quantia em dinheiro. O pastor comprou um Novo Testamento e no próximo culto o entregou. Diomédio passou a lê-lo com avidez, mesmo sob a iluminação de uma lamparina.
Certa vez quando ia trabalhar na roça começou a meditar em certos trechos bíblicos, estava completamente absorto. Foi despertado por uma voz, não audível, mas que falava dentro de seu coração: “Você agora é um crente”. A tal frase ficou martelando-o por algumas horas e ele chegou a uma conclusão: “É verdade... A Bíblia diz que ‘conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. Eu conheci a Verdade que está na Palavra de Deus. Creio nela profundamente... Então... Eu sou um crente. Sou um evangélico”. Palavras dele.
- Olhei para os céus e disse: “Deus, a partir de hoje serei um servo seu”. Contou-nos ele extremamente emocionado, sempre lutando para conter as lágrimas, embora enxugasse levemente os olhos.
A ida aos cultos tornara-se frequente e todos tomaram conhecimento da nova “crença” de Diomédio. Estava ele com 24 anos.
Mas eis que no meio do caminho de sua fé surge um problema. Ele tinha dois intrigados: seu cunhado e seu sogro.
Quando o pastor tomou conhecimento logo o advertiu, que ele não poderia continuar assim. Ele teria que fazer as pazes com os dois, e a resposta de Diomédio foi: “Faço tudo por amor a cristo”. Não sabendo ele que, anos mais tarde, isso seria uma terrível contradição e esse seu amor não se mostraria tão firme e daria mau exemplo.
Marcou um encontro com o sogro e foi até a casa dele. Contou que agora era crente e que eles não deviam continuar sem se falar e pediu-lhe: “Perdoe-me em nome de Jesus”! O sogro o abraçou chorando. Seu cunhado não se achava em casa.
Dada às dificuldades diversas os cultos eram realizados mensalmente, ora em casa de Pedro, ora em casa de Diomédio, ficando a realização mais constante em casa deste.
O pastor Francisco de Assis foi o primeiro pastor em Piranhas, depois veio outro chamado Osório Leme, quando o grupo estava bem estruturado apareceu o pastor Ramiro, mais conhecido como “Ramirão”, que deu continuidade a obra evangelística.
Outro pastor destacado nessa missão foi Eustáquio Lopes, todos enviados pela Igreja de Cristo em Mossoró, igreja esta liderada pelos irmãos, salvo engano, Pedro e João Queiroz, que também apareciam vez ou outra, vindos de Fortaleza. Mas uma congregaçãozinha só nasceria décadas depois.
O próximo culto ocorreu em casa de Pedro Batista, Diomédio prontificou-se em ir levando esposa e filhos, inclusive convidou o sogro e este compareceu também com sua família, bem como pessoas da vizinhança.
O cunhado de Diomédio estava entre os ouvintes e dava bastante atenção a tudo que era proferido, mas a certa distância.
Quando foi feito o “apelo” para que pessoas tornassem-se evangélicas a maioria se converteu, inclusive o tal cunhado, juntamente com sua mulher. Diomédio aproveitou o momento, aproximou-se e pediu-lhe perdão. Os dois abraçaram-se.
Após essas conversões seguiram-se a dos mais velhos. O primeiro foi Joaquim Batista, meu avô, tio de Diomédio. O segundo foi Izídio, irmão de Joaquim e outros os sucederam.
A narrativa de Diomédio encerrou-se nesse momento de grande emoção para ele.
Meu primo Erasmo, que nos havia deixado lá, chegou para nos buscar. A hora já estava adiantada, não dava mais para prosseguir com o depoimento, nem eu considerava oportuno. Ele havia se emocionado bastante.
Eu tinha muitas perguntas para lhe fazer, principalmente a respeito da fama de bruto que ele tinha, quando mais jovem, para com os irmãos. Mas tudo havia mudado. Ele era um cavalheiro, educado, meigo, atencioso, a despeito do passado dele que eu ainda iria tomar conhecimento. Mas como diria um pensamento atribuído ao poeta espanhol Miguel de Cervant, “seja passado o passado. tome-se outra vereda e pronto."
Lembrei-me de quando ele ia a Petrolina, com sua segunda esposa e com o filho desse segundo casamento, de como, apesar de alguns percalços, ele era bem recebido e tratava a todos muito bem. Se alguns tinham ressentimentos colocavam-no debaixo do tapete, mas era notável quando de tempos em tempos o tiravam de lá.
Despedimo-nos com emoção. Seria a última vez que eu o veria.
Ficamos telefonando para saber como ele estava.
Existia outro lado da história dele que eu gostaria muito de saber naquele momento, mas a presença da segunda esposa me constrangia, achei por bem ouvir outra versão contida nas lembranças de sua primeira esposa. Tomemos outras veredas.
Alaíde Alves
Alaíde tinha a mesma idade de seu ex-esposo quando fomos vê-la em um bairro distante do bairro onde estávamos, onde mora minha tia Maria.
Para mim foi um pouco difícil. Eu não a conhecia. Como abordar detalhes de sua vida privada e íntima? Fiquei o tempo todo apreensiva, não queria que fosse algo mecânico, como: “conte-me sua história, pois estou escrevendo um livreto”. Fui cheia de dúvidas. Mas não via como entrar no assunto se as visitas se detinham apenas nas situações presentes.
Meus olhos estão cheios de lágrimas. Tem seis anos que minha mãe partiu (2016). Essa foi uma das melhores viagens que fizemos juntas. Estava também minha tia Maria Batista, com quem eu havia morado dois anos em Mossoró, que continua lá, e novamente minha tia Tereza Batista, hoje residente em Petrolina, próximo ao meu bairro. As três irmãs juntas.
Depois de muita conversa, explicação sobre a visita feita a Diomédio, boas risadas, certo relaxamento, e um bom café, minha mãe reforçou nova apresentação quanto à minha pessoa e esclareceu que elas iam fazer outra visita, porém, eu tinha interesse em ouvir a história de Dona Alaíde, para isso eu não iria com elas. Ela prontamente concordou e eu comecei, inevitavelmente, uma série de perguntas.
Alaíde se mostrava uma senhora mansa, calma e educada. Não fugia, como os demais casais da primeira geração de minha família, ao parentesco próximo a seu marido. Sua mãe, Francisca Alves da Silva era irmã de Maria Batista, mãe de Diomédio. Até hoje não se sabe explicar o porquê desse “Alves da Silva”, uma vez que os patriarcas todos eram “Batistas”. Diz-se apenas que naqueles tempos sobrenomes eram alterados aleatoriamente se assim gostassem. Mas, provavelmente era descendência da família Alves/Brilhante, parentes meio distantes de Álvaro Batista.
Ambos moravam em sítio Piranhas, tinham convivência diária e toda a “primarada” brincava junto, no que eram incomodados pelos adultos que ficavam irritando-lhes com a fantasiosa possibilidade de namoricos. Os primos combatiam veementemente, com muita raiva e envergonhados. Mas o que era apenas uma provocação virou profecia na vida da maioria.
Alaíde e Diomédio não escaparam disso. Ela era quem mais ficava irritada com a brincadeira desagradável dos adultos. Ocorre que aos dezessete anos de idade Diomédio resolveu levar a brincadeira a sério e falou namoro a Alaíde, no que foi aceito. Casaram-se três anos depois, em 1944, estando os dois com quase 20 anos.
Alaíde teve um susto quando foi pedida em casamento, pois sabia que ele tinha uma récua de irmãos, a avó dela, portanto minha bisavó, indagava em tom ríspido: “Você vai casar-se com uma pessoa que tem uma penca de irmãos?! É o mesmo que estar casando com um viúvo!”.
Apesar da preocupação que lhe causava certo temor, ela resolveu encarar o desafio. Estava muito apaixonada. Mas o problema mais sério não era tanto a quantidade de irmãos, sob a custódia do marido, mas sua fama de namorador. Nisso Diomédio era desobediente a Deus, atitude que renderia frutos dolorosos, embora ainda não fosse crente nessa época. Não sabia ele que pagaria um preço bem alto por toda sua desobediência e escândalo que causaria, não apenas enlameando o nome dos crentes, como da própria igreja que dirigia.
Alaíde era um tanto calada. Ele, bem ao contrário dela. Por conta desse traço falante e despachado ele sempre achava um jeito de convencer sua noiva de que tudo não passava de boatos maldosos, sempre que ela pedia uma explicação acerca de certas fofocas, sua justificativa mais constante era:
- Pare de dar ouvidos a essa gente! Depois, carinhosamente, não leve isso tão a sério. Meu pensamento é e sempre será para você.
Alaíde acabava se contentando.
Havia outro problema que preocupava minha “bisa” e a fazia alertar Alaíde constantemente: “Olha, ele tem fama de carrasco. Ele bate muito nos irmãos. Se você casar com uma pessoa bruta assim, vai vê-lo fazer o mesmo com seus filhos”. Confidenciou-me.
- Sabe, sua “bisa” estava certa. O temor dela se cumpriu. Ele foi sem paciência do mesmo jeito com os filhos. Com o tempo isso os afastou dele e trouxe muita amargura e revolta. Confessou-me Dona Alaíde.
Diomédio fora muito severo com os filhos. Alaíde achava que ele herdou isso da mãe dele, que era uma mulher dura, enérgica e severa com os próprios filhos.
Alaíde, casada, prosseguia como dona de casa e mãe de família. Teve 16 filhos. Era submissa. Sabia das traições do marido, que não cessara com o casamento. Apesar da dor, sempre aceitou as fajutas explicações dele para sua infidelidade. Ela também admitiu a convivência difícil entre ela e os irmãos dele, dada, creio, a imaturidade de todos para enfrentar tal situação. Mas nada doeu tanto quanto as perdas de filhos que sofreria anos depois.
Dona Alaíde era muito discreta em relação aos seus assuntos pessoais naquela época. Evitava falar de sua vida, do que sofria ou de tudo que se passava.
Muitas vezes fora lavar roupa nas poças d’água, formadas nos lajedos, onde se encontrava uma turma de mulheres. Lá se ouvia todo tipo de conversa. Alaíde preferia ficar calada e era provocada: “Você não diz nada?! Todas aqui têm sempre o que falar”. Ela apenas sorria, sem responder.
Moraram por uns dezesseis anos em Piranhas. Nesse lugar perderam um filho, de um mês e dez dias, que morreu repentinamente.
Nesse ínterim Diomédio conheceu uns americanos na cidade de Martins. Foi uma amizade recíproca e apego mútuo. Os americanos ficaram encantados com seu potencial e o convidaram para fazer seminário teológico. Eles tinham um sítio, que cederam a Diomédio e sua família. Logo todos estavam instalados.
Em Martins moraram sete anos. O casal era evangélico da igreja Batista e todos os filhos seguiam os passos dos pais, unidos pela mesma fé.
Nesses sete anos que passaram em Martins perderam duas filhas. Uma morreu de meningite e a outra simplesmente de um susto, esta última durou apenas vinte e quatro horas, período em que adoeceu.
Nessa ocasião Diomédio procurou o costumeiro médico do lugar, em casa deste, mas não foi atendido. Todos sabiam que o médico bebia muito e quando estava de ressaca se negava a atender quem quer que fosse. Lá de fora Diomédio fez ameaças de processá-lo por negligência. O medico, então, resolveu passar um simplório medicamento qualquer, que não surtiu nenhum efeito. A criança faleceu.
Após quatro anos de seminário Diomédio foi consagrado a pastor da igreja Batista de Martins, denominação mantida, a princípio, pelos americanos. Logo depois a família foi transferida para Caraúbas e ficou dois anos pastoreando a igreja local. Depois disso foram transferidos para a cidade de Pau-dos-Ferros.
Em Pau-dos-Ferros eles sofrem, mais uma vez, a perda de outro filho por nome Cornélio. Estava com sete anos aproximadamente, quando a roladeira, espécie de barril de madeira usado no transporte de água, arrastado por uma alça de arame grosso, enquanto o mesmo rola. Essa “roladeira” passou por cima do pé do garoto e o machucou, fraturando um dedo. Levaram-no ao médico, mas o tratamento maior foi caseiro.
Dez anos depois Cornélio se queixava de dor no pé, chegando a não suportar o sofrimento. Seus pais o levaram a um médico na cidade de Mossoró. Feito os procedimentos de praxe o médico decidiu operá-lo. Foi colhido material para biópsia, que fora realizado em Fortaleza, no Ceará.
Em casa todos ficaram apreensivos. Sua mãe tinha conhecimento suficiente para entender que sua paz de espírito dependia do resultado daquele exame.
Apesar de ter se consultado e de ter sido medicado, Cornélio não apresentou melhora; ao contrário, piorava cada dia, e o quadro evoluiu para pior chegando a abrir um abscesso.
Novamente voltaram com ele ao médico e este foi taxativo ao afirmar: “É câncer.” O médico encaminhou seu paciente para Recife para tratamento mais prolongado.
O Hospital do Câncer, por si só, tirou da mãe de Cornélio qualquer falsa interpretação que ela pudesse ter a respeito da doença. Ela compreendeu a gravidade da situação, assim também como Cornélio.
O médico de Recife, responsável por esse caso, resolveu amputar o pé do rapaz, mas alertou a família de que a enfermidade poderia aparecer em outra parte do corpo, desconfiado que o rapaz já estivesse com metástase.
Cornélio ficou indo e vindo a Recife, até que em poucos meses a doença se manifestou na garganta. Ele era evangélico, muito bom rapaz e sempre dizia que estava tudo bem. Mas tão logo a doença afetou os pulmões, ele faleceu, aos dezessete anos.
Antecipadamente toda a família tentou se preparar para o inevitável, como se sabe em nossa cultura não há quem considere a morte um evento natural e esta causou um grande abalo.
Passaram alguns anos em Pau-dos-Ferros e a igreja, outra vez, transferiu a família para Apodi. Além do título de pastor, Diomédio conquistou também a presidência da Cooperativa Mista de Apodi, agrícola, a COOPERMIL, sendo eleito e reeleito pela comunidade por trinta e poucos anos, quando lá se aposentou.
Em Apodi Diomédio ficou junto com os familiares por uns quatro anos. Passados esses anos a família resolveu morar em Mossoró. Era importante que a família se instalasse de vez nessa cidade, onde ele liderou, ainda, a 1ª e a 2ª Igreja Batista dessa cidade, ficando ele dividido entre o local de trabalho e a residência.
Os boatos de infidelidade nunca pararam. Tempos em tempos emergia. Dona Alaíde sempre fez de tudo para manter a família unida.
O casal era pais de duas gêmeas. Uma se chama Rute e a outra se chamava Noeme. Nesse período entra na história Ozir, que fez amizade com as gêmeas, tornando-se mais íntima de uma delas. Nessa ocasião já corria certo “disse-me-disse” em relação a Diomédio e Ozir. Ele negava tudo, sempre.
Diomédio tinha muito apego às gêmeas, em especial a Noeme. Era notável a deferência em relação a essa filha, e a compatibilidade entre eles causava espanto, garantiu-me Dona Alaíde. Ambos tinham os mesmos gostos, faziam as mesmas coisas, brincavam muito entre si. Entre eles não havia barreiras. Ela conseguia desfazer qualquer carranca do pai.
Noeme era uma moça vivaz, alegre e muito simples. Não tinha interesse por namoro, seu grande interesse era pelos estudos.
No carnaval de 1978, a igreja Batista, como de costume, organizou um retiro espiritual por ocasião dessa data, em um sítio na cidadezinha de Três Marias, próximo a Mossoró. Afamada por ter um grande açude, ótimo para banho.
Ozir, que contava vinte e três anos, estava entre o grupo, formado por várias pessoas. Dona Alaíde sentia-se amargurada ao contemplar aquela que era alvo dos bochichos que envolviam seu marido de cinquenta e quatro anos. Mas, como sempre, ela nada dizia. A bem da verdade eram apenas “boatos” e ela não buscava prova de coisa alguma.
Apesar de tudo era inevitável não notar a alegria do grande grupo, de como todos se divertiam em cima do caminhão durante a viagem, fazendo aquela algazarra, com cânticos gospel, muitas risadas e piadas em relação aos outros, principalmente por parte dos mais jovens.
Dona Alaíde olhou para Noeme e intimamente se divertiu com o vigor de sua filha de dezenove anos. Estava um pouco preocupada, contudo, pois Noeme logo viajaria para estudar e morar no Rio de Janeiro com um de seus irmãos.
O caminhão estacionou no pequeno sítio e mal os jovens tiveram tempo de se alojarem, todos correram pelas pequenas trilhas de encontro ao açude. Uns estavam conhecendo o lugar pela primeira vez, outros não viam a hora de matar a saudade daquele ambiente bucólico. Os homens conversavam ao redor da casa, as mulheres rumaram para a cozinha. Era preciso providenciar o almoço.
Horas depois, o almoço nem havia sido concluído, ouviu-se um alvoroço: alguém se afogou.
As mulheres largaram as panelas e correram tomadas de grande espanto ao ouvir tal comunicado. Os homens partiram a caminho do açude, desesperados: “Não é possível... Não podia ser! Devia ser engano. Havia apenas poucas horas que tinham chegado”. Pensaram enquanto corriam.
As senhoras tomaram também o caminho do açude, enquanto iam recebendo pouca informação de quem vinha em sentido contrário: “Não sabemos quem foi. Só sabemos que é uma moça e que o corpo sumiu”.
Logo os arredores do açude estavam cheios de gente e alguns da vizinhança se propuseram a procurar o corpo. Antes mesmo de encontrá-lo a constatação dolorosa chegou até Alaíde: Noeme havia se afogado.
Naquele instante Alaíde sentiu que parte de seu coração fora arrancado. Toda a família sentiu uma dor lancinante e Diomédio era o que mais sofria.
O caminhão partiu fervilhando vidas em seu interior; agora, retornava em completo silêncio. Trazendo rostos de semblantes fechados, incrédulos, abalados pela fatalidade. A incubência na ida era de diversão, o retorno era com o objetivo de sepultamento.
Passado algum tempo o falatório em torno de Diomédio e Ozir persistia e ficava sério. Era exigido dele uma explicação e a única que ele fornecia era a mais óbvia possível: “Não há nada entre nós”. Negava sempre.
Mas chegou a um ponto que ele não pôde mais protelar com desculpas esfarrapadas. De alguma maneira todos já sabiam o que Diomédio tentava esconder. Ele não era tão inocente nessa história como queria se fazer passar. Alaíde exigia esclarecimento. Não tendo mais saída ele reuniu a família e admitiu perante eles seu envolvimento com Ozir, que já durava alguns anos.
Foi um grande abalo para todos. Enquanto ele negava pairava no ar a remota possibilidade de tudo realmente não ser verdade, o que dava a família a esperança de recomeço.
Com tudo assumido e colocado em pratos limpos, Diomédio tomou a decisão de assumir Ozir de vez. Montou uma casa e passou a viver com ela. A princípio ficou dividido entre a amante e sua família, pois queria que Alaíde aceitasse a vida dupla dele, Alaíde recusou terminantemente. Seu prestígio espiritual desabou e causou escândalo.
A família, além de sofrer emocionalmente, padecia também no lado financeiro que fora afetado de forma drástica. Dona Alaíde afirmou que a ajuda dada por seu marido foi aos poucos se reduzindo e obrigava a família viver em constantes apertos. As necessidades dos filhos não eram mais atendidas.
Tudo isso os afetou bastante, a família desestruturou-se. Alguns filhos passaram a vivenciar uma pequena revolta. Outros se afastaram do compromisso que tinham antes com Deus. Firmes no evangelho apenas dois filhos e Dona Alaíde. Um dos filhos perambulou por alguns anos no caminho da bebida, dando muito trabalho à família e principalmente a mãe deles.
Dizem que um deles foi muito mais afetado. Em sua revolta, sem entender o porquê do pai ter enveredado por esse caminho, questionava Deus profundamente, chegando a praguejar algumas vezes, como se Deus tivesse culpa do fraco caráter do pai, das escolhas erradas que este fizera, dentro de seu livre arbítrio. Por mais que Dona Alaíde fizesse seu filho compreender ele não se convencia.
Algum tempo depois Dona Alaíde tomou a decisão de separar-se definitivamente. Queria o divórcio. Houve a divisão de alguns bens, uma pensão para ela foi estipulada, e cada um tomou seu rumo.
Diomédio teve um filho com a segunda mulher, chamado Tércio. Ele deu a esse filho não a criação de um pai, mas de um avô, diziam. Fazia todas as suas vontades. O menino logo se tornou um imperialista perante os pais. Na adolescência deixou os estudos.
O próprio Diomédio vinha deixar a pensão à sua ex-esposa. Quando o fazia trazia Tércio a tiracolo, mas deixava a criança, de alguns anos, dentro do carro. Alaíde, incomodada com isso, aproximou-se do carro e falou: “Não precisa deixá-lo sozinho aí dentro. Quando vier entre em casa com ele também”. Diomédio passou a obedecê-la.
Esse menino tornou-se um rapaz que vivia completamente à custa dos pais, pois não queria saber de emprego duradouro. E os pais o sustentavam com tudo de bom e melhor, dando-lhe inclusive um carro.
Não demorou muito para que Tércio se envolvesse com más amizades e isso o fez correr atrás de dinheiro fácil, o que o levou à prisão.
Esse filho viera para fazer Diomédio pagar por todos os seus pecados, falavam. Desde cedo foi muito mimado. Tempos depois sofreria ameaça severa de morte, obrigando os pais a montarem certos esquemas de proteção. Era, enfim, um desassossego que causou pranto alto, em Ozir. Muitas foram as dores que esse filho proporcionou ao casal.
Passado as reviravoltas, com os ressentimentos vencidos, anos depois, Dona Alaíde fez questão de visitar seu ex-marido, por ocasião da grande doença dele.
Logo na entrada da porta, início dos primeiros degraus de uma escada que dá acesso ao apartamento, no primeiro andar, Alaíde foi recebida por Ozir. Ambas se falaram formalmente.
Em seus oitenta e um anos Dona Alaíde sobe lentamente cada degrau da escada que a conduz a seu ex-companheiro. Atrás de si ouve os passos de Ozir que lhe segue, ela pensa tranquila: “Realmente eu os perdoei”. Assim ela me declarou.
Diomédio adoeceu cada vez mais, ano a ano, chegando, por último, a ser internado em Natal. Seus irmãos Pedro e João foram visitar-lhe. O que encontraram foi um homem emudecido e alheio a tudo, aparentemente meio em coma, acamado. Mas os irmãos insistiram em falar seus nomes enquanto segurava sua mão. Ele apertou em resposta e lágrimas escorreram de seus olhos.
Em abril de 2010, Diomédio faleceu aos 86 anos de idade. Ele deixou esposa, ex-esposa e oito filhos, porém, dois de seus filhos faleceram também.
Em maio de 2011, um filho de Diomédio, por nome de Jubal Alves, funcionário da COSERN, foi, lamentavelmente, assassinado a tiros durante uma tentativa de assalto em sua residência. Ele morava em Mossoró e estava com cinquenta anos.
Em janeiro de 2012 Dona Alaíde foi ao encontro do Pai celeste, quando estava com 88 anos, deixando muita saudade entre filhos, netos e bisnetos.
Dada às perseguições Tércio estava morando em Natal, mas não escapou das ameaças de inimigos e comparsas frustrados.
Tércio Duarte, o filho caçula de Diomédio, com sua segunda esposa, Ozir, também foi assassinado em fevereiro de 2015, dentro de um carro, a tiros, no bairro Ponte Negra, Natal, aos 34 anos.
Ozir ficou só, com suas dores.
Temamos a Deus.
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