A destemida
Lembrava mais do pai, Manoel Ernesto da Silva, e não se esquecia daqueles olhos azuis profundos. A janela de seu quarto dava para o curral. Lá pelas cinco horas da manhã acordava com o pai tirando o leite de uma vaca. Com o copo na mão ele o entregava a ela, recebia direto do peito do animal, “morninho”. Quando ela demorava a aparecer na janela ele a chamava.
Da mãe lembra-se apenas das vezes que subia na garupa do cavalo, onde a mesma já estava na montaria. Ela não se esquecia de quando se agarrava fortemente à cintura de sua mãe, da imagem de suas costas e dos movimentos vigorosos daquela mulher tão destemida. Sempre que a mãe ia a algum lugar a levava consigo. Raimunda era a preferida dela, principalmente nas ocasiões em que a mesma ia resolver alguma demanda. Nem mesmo as mais velhas tinham essa deferência. Raimunda não sabia por quê. Ela era a quarta filha.
O pai era muito carinhoso. A mãe fechada, rigorosa. Entrava em meio a qualquer questão, buscando solucionar a pendência. Não era mulher de meias palavras. Infelizmente ou felizmente, até hoje Raimunda não sabe decifrar esse “apagão” em sua mente, pois não lembra a morte dos pais. Lembra-se, todavia, do momento em que a vida dela e das irmãs estava sendo decidido pelos patriarcas “Batistas” e pelo doutor Raul, médico obstetra, compadre e amigo, em uma reunião. Naquele momento seus olhos iam de um a outro. Seu coração estava cheio de interrogações indizíveis. Criança não tinha vez nenhuma.
Ficou decidido, após a morte de seus pais, que ela, e Margarida, iriam para o orfanato. Luíza, sua irmã mais velha, ficaria com Diomédio e ajudaria a cunhada Alaíde.
Os primeiros dias no orfanato foram de completa estranheza. As freiras eram duras em suas exigências. Dos estudos o mais cobrado era a “tabuada”. Caso não soubessem os resultados matemáticos levavam “bolos” de palmatória (um pedaço de madeira comprido, redondo na ponta, como um círculo, não vazado, lembrando o formato de um tipo de concha de cozinha, achatada, sem ser côncava).
Raimunda sempre sentia dificuldade de aprendizagem e percebia que Margarida se destacava mais em relação a ela. O aprendizado delas no orfanato se resumia em aprender a ler, saber escrever uma carta e dominar as quatro operações de “contas”, ainda algum bordado manual e trabalho básico de costura em geral.
Do orfanato, como um todo, Raimunda também pouco se recorda. Em sua mente a lembrança mais viva é a da amizade de uma coleguinha. Estavam sempre juntas. Todas tinham uma história triste para contar.
Mas tem consciência que sentia muita saudade de casa. Chorava muito sem que as pessoas vissem. Sentia a falta dos pais e percebia o quanto estava só no mundo. A tristeza da ausência dos pais e dos irmãos a consumia, principalmente quando as freiras a colocava de castigo.
As muitas lembranças ardiam em seu peito. Aqueles olhos azuis e bondosos, convidando-a a tomar o primeiro leite do dia, eram uma recordação e um suplício.
Primeiro perdeu o pai, novembro de 1940. Depois partiu sua mãe que falecera no parto, fevereiro de 1941, aí viu sua vida virar pelo avesso.
Raimunda foi para o orfanato com nove anos de idade. Passou quatro anos sem voltar para casa.
Diomédio, seu irmão mais velho, sempre as visitava e levava os produtos derivados da cana de açúcar fabricados no engenho do sítio: rapadura, mel, caldo de cana (“garapa”), provados só durante a visita do irmão.
Uma vez casado, Diomédio resolveu pegar as meninas de volta. Por questões burocráticas a saída das meninas demorou além do previsto, obrigando o irmão a procurar um representante da lei, que forçou o orfanato a tornar ágil o processo.
A volta para casa trouxe grande alívio e alegria, que, ledo engano, duraria pouco. Em casa não se falava em estudo, apenas o duro trabalho contava, e não era pouco. As pré-adolescentes madrugavam, praticamente, trabalhavam na colheita de algodão, no plantio de feijão e de batata doce. Somando-se a isso havia o irmão exigente e severo e a incompatibilidade de gênio.
Raimunda estava com quase treze anos quando veio do orfanato.
Luíza fora escolhida para ser a ajudadora da casa, apesar da contribuição maior da cunhada. Faziam tudo: cuidavam da alimentação, das crianças, de lavar e passar roupa. Vez em quando Diomédio levava Luíza para a roça, conforme necessidade.
Ante certas tarefas não cumpridas, em relação aos seus irmãos, Diomédio não sabia como proceder e a solução final era sempre a penalização por meio de violência física, de surras.
Raimunda era novinha, entre quatorze e quinze anos, quando houve uma aproximação entre ela e o irmão da esposa de Diomédio, Alaíde, irmão este apelidado de “Chico”. Ele havia se separado da mulher. Havia o boato de que fora traído, separado, resolveu passar uns tempos em casa de sua irmã.
Logo uma amizade nasceu entre ele e Raimunda. Brincadeira ia... Brincadeira vinha... Elogios. Abraços fortuitos... Chico apaixonou-se e Raimunda começou a gostar dele, mas ele não agiu com decência perante áquela que era apenas uma menina, uma simples adolescente. Ele a envolveu completamente, pois dizia amá-la e enquanto todos dormiam eles viviam seu romance.
O tempo passou. Raimunda guardou segredo, até que um dia eles foram flagrados pela irmã dele.
Ao abordar esse fato ela me confirmou com certo rodeio, evitando ser direta, e insistia em dizer que “era muito inocente, e Deus sabia o quanto”. Percebi certo sentimento de culpa. Talvez ela pensasse que deveria ter lutado contra, gritado. Mas havia amor por parte dela, embora em sua pureza não soubesse distinguir ainda. Fiz questão de afirmar que tinha certeza da inocência dela. E era verdade. E que o passado era passado. Depois de tantos anos não tinha motivo para se envergonhar. Mas era outra geração e o pudor não lhe abandonara.
Raimunda disse a Chico que Alaíde iria contar sobre o envolvimento dos dois para Diomédio. Naqueles tempos, principalmente por não se praticar o divórcio, esse tipo de relacionamento era inconcebível pela família. Para todos os efeitos ele era um homem “casado”, apesar de estar firme em sua separação.
Considerando o temperamento de Diomédio, ambos se apavoraram com a ideia dele tomar conhecimento. Tinham medo de sua reação. Chico, então, propôs uma fuga a Raimunda. Ela concordou.
Fugiram de madrugada para Patu, Rio Grande do Norte. Andaram alguns quilômetros a pé. Quando o dia estava quase amanhecendo adentraram a pequena cidade. Lá pegaram um trem para Mossoró.
Durante essa viagem Raimunda sentia-se muito feliz. Uma sensação incrível de liberdade invadia seu ser. Segundo ela me contou, sentia-se gente no sentido amplo da palavra, sentia-se livre, independente, protegida. Nunca se sentiu tão amada. Percebeu que realmente gostava daquele homem.
A paisagem passava veloz, a “Maria Fumaça” apitava, mas ela não se tocava que aquele silvo era um sinal de alerta do que estava por vir.
Muito cedo, ao tomar conhecimento da fuga, e do que havia entre o casal, Diomédio tratou logo de ir à delegacia mais próxima e acionou a polícia, principalmente por ela ser menor.
Não planejaram descer separados. Desceram juntinhos, como um casal em lua de mel. Não foi difícil para o policial identificar os dois, seguindo as características que lhe fora dadas.
Segundo minha tia o policial era um tenente que a acolheu em sua própria casa enquanto a família vinha buscá-la.
Chico não foi preso e ficou hospedado em casa de um parente em Mossoró. Raimunda e ele eram primos.
Luíza já estava casada e morava em Piranhas, ao descobrir os fatos pediu a Pedro, seu marido, que fosse buscar Raimunda na casa do tenente.
Luíza disse que Raimunda não voltaria mais para a casa de Diomédio. Ela morou um tempo com a irmã, com o passar dos dias seu grande amor virou nuvem levado pelo vento.
Após um período Raimunda conheceu um rapaz das redondezas chamado Antônio Guarany. Os dois começaram a se enamorar. Raimunda não se sentia muito atraída por ele, mas resolveu dar uma chance, apesar de suas lembranças do passado.
Com pouco tempo de namoro a família resolveu apressar o casamento e decidiu contar a história do passado de Raimunda para ele. Ele foi muito compreensivo e disse que isso não significava nada, o que importava era o procedimento dela dali para frente.
Raimunda tinha por volta de dezesseis anos quando se casou. Casaram-se e foram morar próximos a parentela na vizinhança.
Certo dia Raimunda ficou estática ante a grande surpresa de um reencontro com Chico, que aproveitou para fazer uma tentativa de reaproximação dizendo que ainda a amava. Raimunda agora mais madura, e percebendo o perigo dessa aproximação exigiu que ele desaparecesse, deixasse-a em paz e não voltasse mais a acercar-se dela. Ele obedeceu.
Luíza e o esposo decidiram ir morar em Mossoró.
Raimunda e Antônio tiveram dois filhos enquanto moravam em sítio Piranhas: Josué e Judite. Depois de um tempo o casal resolveu ir também para Mossoró e morou perto de Luíza, novamente.
Em Mossoró, Antônio decidiu mostrar um lado que o lugarejo no interior encobria. Ele logo se tornou farrista e namorador. O casal não vivia em união e Raimunda passou a sofrer com isso. A única qualidade dele era que não jogava em rosto o passado dela.
Antônio decidiu que a família iria para Feira de Santana, na Bahia. Nessa cidade Raimunda passou a ter muito mais raiva nesse relacionamento. Vez em quando aparecia uma “comadre” dando notícia dos casos extraconjugais de seu marido.
Um dia Raimunda tomou a decisão de segui-lo até a um parque de diversão e lá o flagrou com uma mulher. Foi uma desavença feia.
Sempre que discutiam, Raimunda lamentava ter saído de perto de sua família, ele, então, ameaçava:
- Um dia vou lhe deixar bem longe. Mas tão longe que você não vai saber voltar, nem vai ver sua família nunca mais.
Raimunda rebatia:
- Eu só não voltaria para meu povo se minhas pernas fossem quebradas. E seja como for eu tenho um Deus que me fará voltar.
Em Feira de Santana nasceu outra filha, Josedite. Quando ela estava com dois meses de resguardo seu marido resolveu que seria bom irem para São Paulo. Lá, toda a família ficou em uma pensão. Após um mês de estada Antônio não conseguiu dinheiro suficiente para pagar a dívida da pensão. O proprietário da mesma despejou a família na rua.
Passaram a noite em uma estação de trem, suportando um frio terrível, que, segunda ela, fazia “bater os dentes”. Raimunda começou a compreender que a situação era mais séria do que ela imaginava. Seu marido era instável e irresponsável, atitudes nunca antes notadas, tão pouco praticadas por ele quando morava em Sítio Piranhas.
O plano de Antônio era ir para Londrina, no Paraná. Em dado momento ele enfiou a mão no bolso, tirou de lá uns "tostões" e começou a contá-los. Não dava para pagar a passagem do filho mais velho. A solução encontrada foi vender alguns objetos trazidos na bagagem.
Com o parco dinheiro conseguido empreenderam viagem, mas não tinham dinheiro para alimentação. A preocupação de Raimunda era grande por causa das crianças. Venderam, então, as alianças. Ela não sabe quanto tempo gastaram nessa viagem, mas se lembra de que foi demorado, parte dela em um trem.
A família chegou a Londrina quase meio dia. Foram para um hotelzinho, onde Antônio já tinha se hospedado, anteriormente, em tempos idos. Na hora do almoço o dono do hotel falou para ele:
- Você dizia que era solteiro, e essa família?
Como resposta Raimunda enfiou a mão na bolsa e tirou de lá a certidão de casamento e mostrou ao tal senhor.
O dono do hotel os acomodou em um quarto com cinco camas.
Certa vez, pela manhã, na hora do café, Raimunda descobriu mais uma traição do marido.
Ao dar a mamadeira para a filha pequena, Josedite, Raimunda solicitou que o filho mais velho, Josué, fechasse a porta do quarto, no que foi barrado por uma mulher que disse:
- Onde está seu pai?
O menino o apontou.
Ela, malignamente provocativa, pediu ao pré-adolescente:
- Pergunte a ele qual foi o nosso trato. Ele disse que iria a meu quarto essa noite. Falou não respeitando nem as crianças. Provavelmente quis se vingar, e mostrar, indiretamente, para Raimunda em que pé estavam certos acontecimentos.
Raimunda limitou-se a dizer:
- Bonito, para sua cara, tamanho desrespeito! Isso é atitude de gente sem honra.
Ele contra atacou:
- Não fale comigo, senão quebro sua cara.
Furiosa, e desafiadora, Raimunda respondeu:
- Pois não erre. Se você errar eu quebro a sua com essa mamadeira de vidro.
Para feri-la, ainda mais, ele disse:
- Quer saber, eu vou para o quarto dela. E retirou-se.
O dono da pensão ouviu tudo, dirigiu-se ao quarto e foi dizendo:
- Olhe aqui, isso é uma pensão familiar. Eu não quero confusão. Hoje mesmo vocês desocupem o quarto.
Raimunda não acreditou no que ouviu tamanho foi seu espanto. Estava morta de cansada e sabia que seu marido não tinha um centavo para ir a lugar algum.
Dia seguinte o dono da pensão insistiu em falar com o "chefe" daquela família, Antônio Guarany, que não se achava presente. Minha tia interveio e tentou argumentar afirmando que não era culpada e que a tal mulher, inclusive funcionária dele, provocara. O tal senhor não aceitou seus argumentos e falou que como ele já devia a pensão, a mala de ferramentas, objetos de seu trabalho, ficaria presa até ele efetuar as devidas diárias.
Horas depois, enquanto Raimunda contava tudo ao marido, chegou o proprietário novamente e pediu a ambos que arrumassem as coisas e saíssem. Ela enfiou as roupas do jeito que dava em algumas sacolas e partiram. Sem rumo. Sem planos.
Resolveram que ficariam na estação até decidir o que fazer. Chegando lá Antônio quebrou o silêncio com duras palavras culpando-a por todo o ocorrido.
Raimunda defendeu-se como pôde respondendo às agressões verbais. De repente ela ficou estupefata com o que ouviu dele:
- Pois agora eu vou embora. Era isso o que eu queria fazer com você!
As trevas escreveram tais palavras proferidas muito tempo atrás. Agora se cumpriam. Raimunda juntou o pouco que tinha, aninhou os filhos e olhou para as costas daquele homem que mais lhe parecia um monstro, que com passos largos partia sem olhar para trás.
Um guarda ferroviário, não muito distante, observava tudo. Bastou Antônio afastar-se para que ele se aproximasse e quis saber o que estava acontecendo. Raimunda contou. O guarda prontificou-se a ir atrás de Antônio, Raimunda o aconselhou a não ir, pois seu marido “era um bruto”. O guarda respondeu: “Eu vou com Deus”. Raimunda logo pensou que estava diante de um crente, apesar da frase corriqueira.
O guarda voltou e cumpriu sua missão, trazia consigo o desaforado marido de Raimunda, não bastasse tanta gentileza, o guarda prontificou-se a levar a todos para sua casa, até que as coisas se ajeitassem. Antes quis saber se Raimunda era crente. Ela afirmou que sim, mas disse que estava um pouco afastada da igreja dado os revezes da vida.
Após instalá-los em sua casa, o “irmão” que os ajudou os levou também para a igreja Assembleia de Deus, da qual fazia parte. Antônio, aproveitando a situação, afirmou que também era crente. Raimunda não o desmentiu, mas pensou: “A Bíblia diz que o Diabo também crer, ou seja, também é esse tipo de “crente””.
O irmão contou a história da família à igreja, os membros comovidos deram ajuda financeira. O irmão “guarda” conversou com o pastor que os instalou de vez na casa pastoral, que se achava desocupada. Trataram de levar para eles colchões, alguns utensílios, lençóis... Nada faltou. Raimunda sentiu o verdadeiro amparo de Deus.
No outro dia o irmão foi lhes fazer uma visita e falou para Antônio que conhecia um membro, da mesma denominação, empreiteiro da construção civil, com o qual já tinha falado, e este daria emprego a Antônio, e a família ficaria em casa do empreiteiro que resolveu acolhê-los, temporariamente, próximo ao possível trabalho. eles não poderiam ocupar a casa pastoral por tanto tempo.
Assim foi. Emprego aceito e acomodação na nova residência. A casa, segundo lembra minha tia, parecia bem luxuosa aos olhos de Raimunda que olhava tudo com muita admiração. Mas o que mais chamou a atenção foi a simplicidade da família que os acolheu. Sentiu muita vergonha quando a criança menor fez xixi no chão.
O casal desocupou um quarto e os acomodou. As refeições eram feitas com todos juntos, à mesa, sem discriminação alguma. Eles ficaram trinta dias com a família acolhedora que bancava tudo, inclusive o leite da criança menor.
Quando completou um mês o empreiteiro, irmão João Abel, pediu que Antônio fosse procurar um “quartinho” para alugar e morar com sua família, uma vez que agora podia contar com o emprego fixo, para que pudessem se mudar.
Assim fez Antônio. Obedeceu. Saiu cedo, demorou muito para voltar. Por fim, no final da tarde, ele chegou com a novidade de que tinha conseguido alugar uma casinha.
No dia seguinte o irmão João fez as contas e nada subtraiu. Mandou que Antônio fosse pagar o aluguel, adiantado, fizesse umas compras, comprasse o básico para a casa, e que depois do meio dia fariam a mudança, com a promessa de o irmão continuar ajudando em tudo. Ele concordou e pediu a Raimunda a certidão de casamento.
Chegou a noite e Antônio não retornou. O irmão João já estava bastante preocupado. Haveria culto logo mais. Ele foi para a igreja, na volta prometeu a Raimunda tentar resolver a situação. Veria o que fazer.
Lá pelas dez horas da noite o irmão retornou e quis saber se Antônio havia regressado. Envergonhada, Raimunda falou apenas que não tinha notícia. Dentro dela uma certeza: “Ele agora realmente me deixou”. Mas nada falou sobre sua desconfiança.
Raimunda adormeceu esperando pelo esposo. Por volta das quatro da manhã acordou assustada. Sentiu sede, foi à cozinha. Minutos depois o irmão João apareceu na cozinha e perguntou se Antônio havia chegado. Raimunda respondeu que não. Diante da resposta negativa de Raimunda o irmão muito se preocupou e aventou a possibilidade dele ter sofrido um acidente. Logo cedo foi para o trabalho. Quando chegou ao trabalho foi avisado por um pedreiro que Antônio tinha aparecido lá e que umas ferramentas haviam sumido.
O irmão João precisou vir a casa para resolver algo e aproveitar para lanchar. Nada falou de sua suspeita. Pediu que ligasse o rádio no noticiário local. Manteve o controle, talvez temendo a fragilidade de Raimunda, que alegava fraqueza, amamentava, e tinha tonturas com frequência, além de estar muito magra.
No fim do dia o irmão chamou Raimunda e com certo jeitinho falou que o marido dela havia ido embora. Segundo investigação própria, apresentando uma foto de Antônio, o irmão descobriu que ele voltou à antiga pensão onde havia contraído dívidas e deixado as ferramentas como garantia. O dono explicou que ele pagou o que devia, apanhou as ferramentas e se foi, e a tal mulher com quem ele se envolveu, anteriormente, não compareceu ao trabalho naquele dia.
Ainda com a foto na mão o irmão João foi mais além; foi até a rodoviária e descobriu que Antônio havia comprado passagem, juntamente com uma mulher, rumo a Mato Grosso.
Raimunda nunca sentiu uma mistura de sentimento tão grande como a que estava sentindo: dor, abandono, decepção, traição, raiva, desengano, falta de rumo. A lista era enorme.
A família que a acolhia, insistindo no impossível, colocou anúncio na esperança de que Antônio tivesse um estalo de lucidez e voltasse para reaver esposa e filhos.
Os dias se passaram e Raimunda foi tentando acostumar-se a ausência do marido perverso, ocupando-se com os cuidados às crianças e auxílio à dona da casa.
Raimunda passou mais um mês com a família. Era trabalhadora e ajudava em tudo, nos afazeres domésticos de um modo geral.
O irmão João falou para Raimunda que se ela quisesse colocaria os meninos em um internato Batista, mas ficasse ela sabendo que não poderia vê-los com frequência, somente em dias determinados e Raimunda arranjaria um emprego.
Raimunda falou que, com todo sofrimento que estava sentindo, e sabia o quanto teria que sofrer “nesse mundo de meu Deus”, seu desejo era voltar para a sua terra, para o seu povo.
O irmão pegou um mapa, chamou Raimunda e mostrou para ela onde estava Mossoró-RN: em um dos últimos Estados no desenho geográfico. Como ela chegaria lá sozinha?! Ainda mais com três crianças? Interrogou o irmão muito preocupado. Isso não a intimidou. Raimunda se pôs determinada a voltar para seu lugar de origem.
O irmão fez um histórico da vida de Raimunda e saiu pelo comércio pedindo colaboração financeira, a um e a outro, para que ela pudesse voltar. Todos colaboraram à medida que podiam.
Na igreja, à noite, ele tornou a falar a mesma história, de como estava tentando conseguir meios para ajudá-la, uma vez que ela nem queria ficar, nem queria colocar os filhos em um internato. E pedindo a colaboração da igreja, solicitou que todos os dízimos e ofertas fossem doados a Raimunda, assim foi feito.
Com o auxílio monetário recebido, a esposa do irmão comprou roupas e calçados novos para Raimunda e as crianças. Era também uma pessoa muito boa.
A família levou seus hóspedes para a estação ferroviária e os colocou em um trem que partia de Londrina a São Paulo.
Um moço que trabalhava na estação perguntou se ela sabia ler, vendo-a viajar sozinha com aquelas crianças. Raimunda respondeu que sabia o suficiente para compreender e ler a rota dos ônibus, bem como as placas indicativas.
O moço completou insistentemente: “A senhora está sozinha com essas crianças... É uma mulher bonita... Tome muito cuidado. Quando chegar a São Paulo procure a guarda feminina. O presidente Juscelino Kubitschek tem um programa social que proporciona passagens gratuitas”.
Então ela lembrou-se do conselho do rapaz lá em Londrina e ao descer na estação de São Paulo, tentou encontrar as tais moças fardadas. Mas não conseguiu imediatamente. Alguém lhe disse que elas ficavam em determinado local, só indo de táxi. Ela foi juntamente com as crianças. Minha tia jura que foi para o Palácio presidencial de Juscelino Kubitschek. Suponho que era apenas o palácio do governo de São Paulo, lá existia (não sabemos se ainda existe) um plenário chamado "Juscelino Kubitschek". Onde havia um departamento social para assistir os menos favorecidos.
Ela contou toda sua história, foi acolhida e bem acomodada, provavelmente em um albergue, onde ficou por cinco dias. Nada faltou, nem o leite das crianças, até ser recebida no gabinete de um assessor, que lhe deu uma carta de passe livre para ela ir a onde quisesse.
Raimunda pegou um ônibus que a levaria até ao Estado da Bahia, à casa de sua sogra, em Feira de Santana. A velha senhora acusou-a severamente de ter matado o filho dela, de ter colocado o corpo dele embaixo da cama, lá na pensão, e fugido.
Raimunda insistia em contar a mesma história, falou em detalhes do que o marido aprontou, mas nada convencia sua sogra. Ela estava furiosa, e falava que Raimunda tinha o gênio forte e era capaz de fazer isso, portanto, foi sim, na versão dela, o que aconteceu.
Raimunda ainda ficou uns quinze dias na casa da sogra. Tinha esperança que o marido aparecesse e a livrasse de tal acusação. Sentia prazer em imaginar a cara da velha ao se deparar com o filho “amado”.
Nesse período chegou uma carta de sua irmã Luíza, que continuava morando em Mossoró, dando conta que a mesma não estava nada bem, em consequência de uma cesariana. Raimunda decidiu ir urgentemente para lá. A carta de passe livre já tinha perdido a validade. Como não podia levar todos os filhos, ela foi apenas com Josedite, a “menorzinha”, e Josué, o mais velho. Resolveu deixar Judite com a avó.
Por acaso descobriu um caminhão carregado de madeira que ia até próximo a Mossoró. O motorista lhe deu uma carona. Ela encontrou umas brechas entre a madeira, forrou bem com os lençóis e lá enfiou as crianças. Pegou sol, chuva, vento, e sua pele ardia. Seus olhos estavam sempre lacrimejando.
O dinheiro era pouco, não se alimentava direito. Chorava muito. Estava bastante fraca.
Desceu em Souza, na Paraíba. Em chegando lá ela desanuviou o semblante triste. Por coincidência encontrou um conhecido, ela sabia que fora providência divina. O moço ofereceu-lhe estada em sua casa, onde ela pode tomar banho, banhar as crianças, jantar e dormir.
Dia seguinte pegou uma “Maria Fumaça” rumo a Mossoró. Por fim, chegou ao bairro de Luíza e até a casa dela. Ao aproximar-se da casa uma vizinha adiantou-se para que Raimunda não adentrasse a casa de supetão, uma vez que Luíza não estava nada bem. Raimunda concordou e a vizinha foi falar com Luíza. Depois de uma boa conversa e com muito jeitinho falou da presença de Raimunda ali.
Luíza chorou e emocionou-se bastante, foi um “Deus nos acuda”, pois ela quase desmaiou, uma vez que não tinha notícia da irmã fazia muito tempo.
Depois foi a vez de Raimunda não suportar as emoções e por conta da fraqueza física ficou dois dias deitada em uma rede, levantando-se com ajuda, apenas para as necessidades fisiológicas. Estava meio que fora de si. Abria os olhos, vez ou outra, mas não se dava conta onde estava e o que havia acontecido. Passado esses dois dias ela foi se recuperando, pouco a pouco.
Nesse período crítico ela recebeu a visita de seu irmão mais velho, Diomédio, que queria ajudá-la. Isso lhe foi contado depois, pois ela não se lembrava de tê-lo visto, embora ele tenha, inclusive, falado com ela.
Recuperada, Raimunda passou a ajudar bastante Luíza, que havia tido problemas na cirurgia e a mesma não cicatrizava, além da criança dela ser bem adoentada. Ficou um período de seis a sete meses. Enquanto isso lavava roupa e passava, de ganho, juntando dinheiro para ir buscar Judite que havia ficado em Feita de Santana.
Com muita insistência da família ela aceitou colocar Josué, o filho mais velho, em um internato para meninos. Todos garantiam que lá ele teria mais oportunidade nos estudos e formação.
Novamente ela conseguiu outra carona, dessa vez bem mais confortável. Ia à cabina do veículo e tinha condições de se alimentar bem. Em casa da sogra tomou conhecimento que ninguém sabia do paradeiro de Antônio. Pegou Judite e retornou para a casa de Luíza. Continuou a morar lá por mais um tempo.
Durante essa estada sua irmã Margarida, que morava em Patos, na Paraíba, resolveu vir a Mossoró para visitar as duas irmãs. Margarida ainda não tinha filhos, o marido viajava bastante e ela se sentia muito sozinha e pediu a Raimunda que deixasse Judite ir morar com ela, que ela se responsabilizaria pelos estudos da menina. Raimunda relutou bastante, mas sua irmã foi muito insistente, Raimunda acabou cedendo, sabia que podia confiar.
Judite chegou à casa de sua tia quando era pré-adolescente, pouco tempo depois de sua chegada Margarida engravidou. Judite só saiu da casa de sua tia quando casou.
Em casa de Luíza tudo ia bem, não fossem as brincadeiras “doidas” de seu cunhado, e primo, Pedro Batista, para com sua filha Josedite. Pedro se cobria com um monte de roupa velha e fazia susto a Josedite, correndo atrás dela. Enquanto Josedite gritava e se tremia; Pedro gargalhava. Raimunda insistia para que ele parasse com isso. Ele não obedecia divertindo-se.
Como Luíza já estava muito bem recuperada Raimunda tomou a decisão de ir morar com a prima Joana, em Fortaleza, que a recebeu com muita alegria. Era essa uma de suas características. A famosa “tia Joana”.
Em casa de Joana a rotina não mudara: ajudava nos afazeres domésticos, lavava e passava roupa de ganho.
Margarida teve seu primeiro filho, Flávio Diniz, e pediu a Raimunda que fosse ajudá-la na recuperação do parto, em Patos, PB.
Antes Raimunda foi falar com Josué, a quem sempre visitava e explicou toda situação, garantindo-lhe que na hora certa ele sairia de lá.
Em Patos ela ficou um tempo com o casal Margarida e João Cassiano. Nesse período apareceu Braz, seu irmão, vindo de Petrolina, PE, ficou muito alegre em revê-la e decretou que a levaria consigo para morar com ele. Raimunda aceitou.
Braz trabalhava no Projeto de Irrigação Bebedouro, que estava se iniciando a alguns quilômetros de Petrolina, administrado pela CODEVASF (Companhia do Vale do São Francisco).
Esse Projeto era a “Dubai brasileira”. Era a frutificação no deserto. Tempo de oportunidades e facilidade por parte do governo, desde que a pessoa fosse sorteada com alguns hectares de terra, denominado “lote”.
Tempos depois, atraídos pela possibilidade de oportunidades, foi a vez de Margarida e seu esposo, João Cassiano, virem para o Projeto Bebedouro.
Raimunda se revezava entre as casas dos dois irmãos e continuou com sua atividade de lavar roupa, inclusive, para a família também. Como era boa cozinheira resolveu abrir um pequeno negócio de lanchonete, pois era exímia tapioqueira. Ela decidiu fazê-las para vender, haja vista haver muito “peãozada”, como se chamava os trabalhadores braçais, de trechos, de diversas funções.
Acordava três horas da madrugada e se punha a fazer centenas de tapiocas. Vendia todas. Logo sua tapioca ficou famosa.
Por acaso João Cassiano viu certo “galpão” (casa minúscula com um ou dois cômodos, que abriga o colono) desocupado e perguntou se Raimunda não queria ir para lá. Ela aceitou de bom grado e feliz montou “seu cantinho” e se mudou com a filha Josedite.
Entre essa “peãozada” estava José Alves, pedreiro, paraibano, que trabalhava tanto com os irmãos de Raimunda, como com o cunhado desta, João Cassiano, construindo enormes canais de onde saiam os canais pequenos para a irrigação do plantio.
Logo José procurou saber quem era Raimunda. Passou a comprar mais tapioca do que seu estômago pedia, e uma aproximação foi se dando entre eles.
Margarida não aprovava. Sabia que ele bebia. Tinha jeito de homem agressivo. Sempre aconselhou Raimunda para não entrar nesse relacionamento.
“Zé Alves”, como era costumeiramente chamado, falou namoro a Raimunda e foi preparando o terreno para ter seu consentimento, para isso falou a um amigo que estava apaixonado, que achava Raimunda muito bonita, principalmente seus olhos “puxados” (hoje, na velhice, seus olhos não parecem tão puxados, mas alguns de seus filhos e netos herdaram esse traço de sua genética quando jovem).
Depois de uma pequena amizade, e já passado um tempo, Dôra, cunhada de Raimunda, esposa de Braz, sugeriu que ela casasse com ele, pois era solteiro e muito trabalhador. Ela acabou cedendo. A família tratou de arranjar tudo.
Passaram-se alguns anos. De seu primeiro marido nunca mais ouvira falar e ela perdera o contato com sua ex-sogra. Não sabia se ele estava vivo ou morto, como não sabe até hoje.
Raimunda, na época, relutante em suas convicções bíblicas, segundo afirmou ela própria, aceitou casar-se “no Padre”, como denominavam. O casamento foi oficializado pela igreja católica, uma vez que Raimunda nem era viúva, nem desquitada, para casar no civil.
Na hora do casamento, Dona Virgínia, esposa de Antônio Cassiano, e uma das madrinhas, falou para o padre: “O senhor sabe que está casando um católico com uma crente?!” O padre não deu à mínima e limitou-se a responder secamente: “Acontece”. Sei que muitos podem estranhar e pensar: “O padre está certo”. Ocorre que temos interpretação diferente no que se refere à doutrina bíblica, nesse caso a família fica dividida. Por exemplo, a mãe crente não concorda com o batismo de bebês, dentre outros costumes, pois isso não está exemplificado na Bíblia, mas o pai pode exigir, o que vai gerar embate, discórdia, e filhos espiritualmente divididos.
Os dois casaram-se em Juazeiro-BA.
No princípio o casamento foi bem e Raimunda gostava dele, mas com o tempo outro lado, totalmente desconhecido de Zé Alves veio à tona. Quando bebia mostrava-se encrenqueiro com alguns da família dela, não mais havia o compromisso que mantinha anteriormente. Adorava pescar e, quando mais velho, ocupava parte de todo seu tempo fazendo isso. Com a família já não se importava tanto.
Anos depois, a mudança foi total, não se importava em prover todas as necessidades da família, só queria saber de beber, jogar sinuca e pescar.
Muitas vezes faltava o alimento, quando Raimunda comunicava tal fato ouvia dele: “Eu como por que trabalho; como você não trabalha vai comer quando eu der”, nas próprias palavras dela.
Zé Alves fazia da vida de Raimunda um inferno, segundo ela contou. Com o passar dos anos ele deixou claro que odiava crente. Proibia-a de ir à igreja evangélica. Ele não tinha religião. Ela o obedecia sempre cheia de medo, pois muitas vezes eram grandes as confusões. Quando raramente ela ia a um culto, ele trancava a porta e era uma insistente luta para que ele a abrisse após horas do lado de fora argumentando.
Tempos atrás, Josué, que tinha oito anos quando entrou no internato, saiu ao completar dezoito. Mesmo no internato ele tinha liberdade de passar determinados dias em casa de sua tia Luíza, junto com sua mãe.
Quando completou seu tempo no internato ele foi para a casa de sua tia, que supriu algumas de suas necessidades, comprando-lhe roupas, por exemplo, e uma mala. Sua mãe encontrava-se em Petrolina.
Saindo do internato decidiu ir para a casa de sua avó paterna, que não morava mais em Feira de Santana, mas em São Paulo. Lá, quem o recebeu na rodoviária foi sua prima Noeme Batista, que morava lá algum tempo e o levou ao bairro onde ficava a casa de sua avó. Ele continuou sem saber o paradeiro de seu pai.
Josué tinha o sonho de ser paraquedista e foi fazer um curso no Rio de Janeiro. Nesse meio tempo ele tinha arranjado uma namorada, por nome de Lúcia, ela morava com os pais, vizinhos de sua avó. Mas o curso tinha umas etapas, que o fazia viajar sempre, saltou de para quedas, bastante, durante o processo de formação, chegando a cair em cima de uma árvore em um desses treinamentos, mas nada grave lhe aconteceu.
No entanto, ele não poderia casar enquanto não concluísse o curso, é o que dizem. Sua futura sogra insistia muito para que o casal casasse. Josué cedeu à pressão, casou-se e perdeu a formação no curso de paraquedismo. Os narradores desse fato não sabem o porquê dessa exigência radical. Ele teve filhos e depois disso passou a trabalhar no que aparecia. Tempos depois ele tornou-se funcionário do Banco Itaú.
Sua mãe e seu padrasto José Alves foram convidados para o casamento e acabaram ficando por lá, morando um tempo em São Paulo. Contudo não se adaptaram, ou melhor, Zé Alves não se acostumou com a selva urbana e só falava na selva nativa, onde podia pescar e caçar. Voltaram.
Os tempos eram difíceis, como sempre. Raimunda em Petrolina e seu filho em São Paulo. Ambos com vontade de se verem, porém as condições não permitiam.
Com uma ajuda daqui e dali Raimunda foi até Goiânia rever seu irmão Pedro, então pediu a Josué que se empenhasse e fosse até Goiânia, pois ficava mais perto de São Paulo.
Josué disse aos filhos que faria esse grande esforço, pois, poderia ser que sua mãe morresse primeiro que ele, e ele não suportaria o remorso. Os dois se reencontraram, juntamente com o tio Pedro, e primos. A alegria foi grande.
Uns três meses depois Josué faleceria primeiro, de ataque cardíaco, aos 53 anos de idade.
Ele morou também um tempo em Petrolina, quando a situação não estava nada boa em São Paulo. Eu, Auzinetti, pude conviver um tempo com a família.
O casal era maravilhoso. Eu tinha uns dezessete anos. Nesse período estava feliz da vida por possuir uma câmera fotográfica analógica e certa vez o convidei para que fosse tirar umas fotos de mim, à beira do rio São Francisco. Como homem casado, pai de filhos, poderia não querer perder tempo com interesses de uma adolescente. Mas ele foi. Arranjou uma bicicleta, subi no bagageiro, e lá fomos nós. Ele era calmo, meio introspectivo, mas de sorriso fácil. As fotos ficaram ótimas. Sempre que eu as revejo, pequenas e avermelhadas pelo tempo, não tem como não me lembrar da figura de meu primo generoso. Pouco tempo esteve em Petrolina. Logo a família voltou para São Paulo.
Quando Raimunda me contou sua história fazia poucos anos que perdera esse seu filho mais velho. Ela não conseguia esquecê-lo. No período do acontecimento ela estava se recuperando de uma cirurgia de risco no coração. Os filhos não permitiram que ela fosse ao enterro, dado seu estado de saúde. Essa ausência no momento final da vida de seu filho mais velho doía muito.
Anos mais tarde foi a vez de a esposa de Josué, Lúcia, falecer em um acidente de carro.
Com Zé Alves, Raimunda teve quatro filhos: Roberto, Josildo, Rute e José Alves, este mora em Brasília, DF, há muitos anos. Filhos com o primeiro marido foram três: Josué, Judite e Josedite.
Após vinte e nove anos de casada, os filhos adultos e também casados, independentes, Raimunda, numa fase madura, exaurida de tantas dores, causadas principalmente pelo temperamento do marido, tomou a decisão de divorsiar-se.
Zé Alves ficou sendo cuidado pelas filhas. Sua dependência no álcool estava bastante avançada, a ponto de ter constante desarranjo intestinal. O médico decretou que se ele não parasse com o vício morreria logo.
As filhas queixavam-se. Zé era teimoso, ranzinza, e não deixava a bebida por nada.
Decisão tomada, Raimunda saiu de Bebedouro e veio para Petrolina, morar com sua filha mais velha, Judite. Nos fundos da casa de Judite havia uns pequenos cômodos. Raimunda acomodou-se lá, e Judite garantiu que nada lhe faltasse, com a ajuda dos demais filhos.
O único bem que o casal possuía era uma casa no Projeto de Irrigação Bebedouro, Nova Descoberta, onde Zé Alves continuou morando e não arredava pé. Mas logo depois ele insistiu muito em vender a casa. Todos eram contra, isso poria fim à independência dele. Raimunda não concordava por que sabia que ele ia ficar sem pouso fixo, apesar de ter alguns filhos que moravam por perto e cuidavam muito bem dele em relação à saúde, quando ele permitia, e à alimentação.
Mas ele estava irredutível. Incomodou muito a ex-esposa para que a casa fosse vendida e a venceu pelo cansaço. Ela não achou outra saída a não ser concordar.
Apesar da quantia insuficiente que lhe coube, Raimunda decretou:
- Deus vai me dar nem que sejam dois cômodos. Eu vou ter minha casinha outra vez.
Raimunda dividiu parte do dinheiro que recebeu da casa e o guardou. Com a outra pequena metade comprou umas confecções e começou a vendê-las. Tempos depois comprou um terreno em Petrolina. Foi comprando parte do material e depositando-o junto ao mesmo.
Josué, que estava vivo nessa época, e continuava morando em São Paulo, enviava-lhe uma caixa de roupas, pois o preço em São Paulo era bem melhor, e ela as revendia.
Depois veio o mutirão, a ajuda de irmãos, genros, filhos. A casa ficou de pé. De princípio era bem pequena, mas bem zelada, segura e habitável. Persistente como ela era, aos poucos foi aumentando-a e ela construiu mais cômodos.
Nesse período, Zé Alves necessitou passar uns dias em casa de uma de suas filhas que morava no mesmo bairro da mãe, poucas ruas depois. Vindos do centro da cidade a filha precisou passar em casa de sua mãe. Chamou o pai para entrar e este recusou, ficando na calçada. Lá estava ele, por força do destino, contemplando a multiplicação, o rendimento da parte que pertenceu a Raimunda, por direito.
Raimunda ficou pensando na ironia do destino, mas ela percebia de outra forma e não havia sentimento de vingança. Ela achava que Deus o pusera bem na frente de sua casa para que ele testemunhasse e visse que as palavras negativas, as imprecações, não se cumpriram. Ela encheu-se de gratidão a Deus.
Posteriormente à venda da casa Zé Alves não se programou, e “torrou”, pouco a pouco, todo o dinheiro da parte dele, passando a morar de aluguel. Mas sempre fora acolhido pelos filhos que faziam de tudo para dar um bom tratamento e ele prosseguia em sua carranca e mau humor. Por último, entre idas e vindas de internamentos hospitalares, sua filha, Rute, acolheu-o para que ele passasse a morar com ela, apesar do temperamento difícil do pai.
As dificuldades na saúde de Zé Alves, agravavam-se. O problema da vez era diarreia crônica e isso se dava a qualquer momento e em qualquer lugar. Ele foi internado várias vezes, na penúltima o médico repetiu: “Se o senhor não parar de beber, vai realmente morrer!”
Depois das internações ele tinha uma melhora, que durava apenas dias. Passado pouco tempo, foi internado. Essa seria a última. Não resistiu. Infelizmente faleceu.
Em 2013 fui ao aniversário de tia Raimunda, de 80 anos, junto com meu pai e meus irmãos. Ela deu um culto de ação de graças, de agradecimento a Deus, por todo socorro que Ele prestou-lhe no decorrer de sua vida.
A casa estava toda murada. Havia um portão com uma passagem menor e outra mais larga. Logo na entrada uma pequena área de estar, depois a sala, a cozinha, e no final outra área menor, de serviço, a seguir o quintal. O portão grande dava para este, e o espaço servia de garagem, cabia o carro de algum filho quando vinha passar mais tempo com ela. Havia algumas plantas, que ela amava, e um pequeno galinheiro onde era criado algumas galinhas. Resquícios do costume de agricultora, de pessoa da roça.
Do lado direito da casa ficavam o banheiro social, dois quartos, sendo um com “suíte”. A casa é toda forrada e com piso de cerâmica, embora bem simples.
Ante sua casa de porte mediano, ao me contar sua história ela disse:
- Olha só! Deus não me deu apenas dois "cômodos", como pensei lá no princípio. Olha o tamanho dessa casa! Seu sorriso era imenso. Seus olhos envelhecidos brilhavam. Ficava a lição de que não precisamos de riqueza para sermos felizes. Ela se sentia rica.
Ela é feliz? Sim. Quem tem Jesus no barco vence toda tempestade. Tomei esse depoimento em sua própria casa.
Minha mãe Laura ainda vivia entre nós. Ela e tia Raimunda são primas, e nesse encontro minha mãe foi de grande ajuda, relembrando algum fato, contribuindo com a memória de Raimunda. Interrogando: “Raimunda, e àquela vez...” Minha tia dava boas gargalhadas quando se lembrava de acontecimentos, não só dos engraçados, mas da hilaridade dos fatos escabrosos, como por exemplo, dizer que quebraria a mamadeira de vidro na cabeça do ex-marido.
Raimunda concluiu dizendo: “Graças a Deus não tem me faltado nada. Sou muito feliz, por que Jesus tem sempre estado ao meu lado. Ajudando-me, curando-me, renovando minhas forças e me dando mais anos de vida”.
Raimunda está (2017) com 85 anos e tem uma viagem aérea marcada, vai para Goiânia comemorar o aniversário de 80 anos de seu irmão Pedro. Ela tem sério problema cardíaco já há alguns anos, dada a idade o médico aconselhou não operá-la novamente, mas o coração dela segue firme e forte contrariando a medicina e espantando alguns médicos.
Em 2019, com 89 anos, Raimunda começou a apresentar sinais de Alzheimer. Foi preciso deixar sua casa e passou a morar com a filha Josedite, no mesmo bairro onde residia.
Em 2022, no mês de maio, parte da família, junto com alguns crentes da igreja evangélica Assembleia de Deus, da qual ela é membro, se reuniu para comemorar o aniversário de 90 anos de Raimunda. Infelizmente ela já não se encontra tão lúcida, já não reconhece todos os filhos, nem os netos.
Durante o culto, mesmo em seu estado de demência, entre uma música e outra, bem como o pronunciar das palavras do pregador, pude ouvi-la, apesar da mão segurando a testa e os olhos estarem fechados, dizer: "glória a Deus!", "aleluia!". Sua conscientização, referente às coisas de Deus, estava intacta. Judite me falou que ela, vez em quando, fala que "está bem pertinho de Jesus vir buscar-me". Outras vezes pede: "Papai do céu, me leve...". De maneira que surpreende quem a ouve. Ela tem dificuldade em reconhecer pessoas, mas não esquece, em momentos como esse, de seu pai celestial
Parabéns, minha tia!
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